Esquerda e direita no
séc. XXI? – Pergunta pouco útil, ou talvez pior do que inútil
A equidade e a eficiência
Após as
tentativas – pelos vistos não cabalmente sucedidas – de
dividir a política em dois extremos, parece que, desde há décadas, aquilo que
nas sociedades democráticas mais robustas (ou eminentemente democráticas e
civilizacionais, como têm sido aqui designadas) poderá melhor destrinçar a
esquerda e a direita cinge‑se ao confronto profícuo entre a equidade e a
eficiência. Isto porque a equidade e a eficiência são acarinhadas, (consciente
ou) inconscientemente, pelos agentes políticos, por consistirem na menina dos
olhos da esquerda e da direita, seguindo essa ordem. Não será redutor se se
adiantar que a equidade da esquerda tem dado primazia à distribuição da riqueza
e dos rendimentos gerados, enquanto a eficiência da direita tem posto o enfoque
na produção da riqueza e na geração de rendimentos – geração esta
marcada com o intuito de maximização dos rendimentos dos detentores dos meios
de produção, e não tanto do benefício coletivo dos rendimentos gerados.
Esta associação
direta – para o campo da política – da esquerda à equidade,
por um lado, e da direita à eficiência, por outro, terá uma semelhança com o
que John Rawls efetuara, em «Uma Teoria da Justiça», para o domínio da
justiça, porquanto ele construiu uma abordagem segundo a qual a justiça ideal
assenta no respeito máximo e equilibrado dos princípios da equidade e da
eficiência. Assim sendo, a semelhança brota pois, inevitavelmente, da
utilização versátil dos critérios da equidade e da eficiência. Com efeito, para
este documento e em termos políticos, o que importa realçar resume‑se ao papel
exercido, pela equidade e pela eficiência, na concretização da verdade
democrática, o âmago do bem comum.
Ou seja, se a equidade e a
eficiência são dois vetores direcionais, como que se dois carris se tratasse,
contribuindo para que o comboio não descarrile e prossiga sem percalços o seu
percurso até à chegada programada do supremo bem comum, não há motivo racional
para que a política seja diferente da justiça (incluindo a de John Rawls). Nas
sociedades eminentemente democráticas e civilizacionais, a ponderação adequada
daqueles dois vetores deve ser enveredada para o maior número possível de áreas
para além da política: da justiça à concertação social, da segurança social ao
combate à pobreza, da saúde à educação, entre tantas outras áreas. Se o comboio
da justiça, da concertação social, da segurança social, do combate à pobreza,
da saúde e da educação atingem incontestavelmente melhor o bem comum quando
orientados pela equidade e pela eficiência, é inequívoco que o mesmo sucede com
a política, o epicentro da vida em comunidade.
A equidade e a eficiência são os
ingredientes naturais das democracias consolidadas, ou seja, das sociedades
eminentemente democráticas e civilizacionais. Leia‑se o seguinte excerto do
documento «Humildade para entender o futuro da democracia», de 23 de
dezembro de 2013, publicado em 28 de dezembro: «Fazendo uma viagem rápida à
história mundial, podemos concluir que, apesar de a crítica constituir uma das
características humanas a valorizar – porque vai evoluindo, tornando‑se
útil para a sociedade –, não releva devidamente para a qualidade
democrática. Somente com apreciações proporcionadas, apoiadas na equidade e na
eficiência, é possível alcançar tal qualidade.»
Como os dois parágrafos anteriores
objetivamente espelham, a importância da equidade e da eficiência não advém de
meros motivos teóricos. Equidade e eficiência são fundamentais porque
certamente incorporam o maior valor de pensamento acrescentado: o espírito
crítico. Uma sociedade é tanto mais rica quanto melhor souber substituir a
cáustica crítica vã pelo humilde espírito crítico. Quanto mais este for
interiorizado pelos eleitores, mais se esbatem as diferenças entre a esquerda e
a direita.
A esquerda é mais utópica. Tem
ótimas ideias para atingir o bem comum, ainda que normalmente sem rigor e
responsabilidade, dado descurar a análise técnica e financeira, e nem se importar
de não certificar‑se que as ideias são exequíveis e não acabam até por
prejudicar o benfazejo interesse comum. Pelo contrário, a direita é mais
oportunista. Adota ótimas estratégias para atingir o bem pessoal ou
corporativo, mas regularmente recorre à opacidade de argumentos e aos subsídios
que ironiza e critica, sem se incomodar que muito do empreendedorismo
falsamente transpirado está pejado de negócios de lesa‑pátria e negociatas de
lesa‑crime que ferem de morte o erário público e o gentio indefeso.
Nos Estados modernos, vulgo Estados
sociais suportados por economias mistas, não há lugar à esquerda e à direita
nos moldes enraizados e estigmatizados. Neles é imprescindível, cada vez mais,
espírito crítico para articular a realidade – crescentemente dinâmica
e complexa – com a verdade. A pronta colocação dos óculos da esquerda
ou da direita materializar‑se‑á na entrega do ouro ao
bandido – entenda‑se: bandido da direita ou da esquerda. Se ambos
podem estar certos, ou eventualmente errados, então algo de ilógico prevalece.
Daí que, ao fitar unicamente o seu
ângulo, e não atender à diversidade de ângulos alternativos, a defesa afincada
da esquerda ou da direita redunda na fragilidade da sua posição e no
fortalecimento da posição do adversário. Rectius,
ela – esquerda ou direita – expõe‑se, com entusiamo
exclusivo, à defesa dos seus argumentos ideológicos, descurando a proteção dos
mesmos ante as investidas dos oponentes que defendem acerrimamente argumentos
ideológicos contrários. Pessimamente vai a política quando - retome‑se
o penúltimo parágrafo – a falta de rigor e de responsabilidade é
extensível outrossim à direita, e os negócios e as negociatas assentes na má‑fé
contaminam também a esquerda.
Nas sociedades
democráticas – na efetiva aceção da expressão, onde a liberdade é um
substantivo ativo – do séc. XXI (e do séc. XX), quem se
reconhece de imediato como apologista da esquerda, porventura será por
defender, incondicionalmente, a diminuição das desigualdades e o aumento da
justiça social, e por conseguinte quase idolatra de forma inquestionável o
papel do Estado enquanto agente central de tudo e supremo de todos. Ao invés,
quem se identifica perentoriamente como filiado na direita, talvez seja por
confiar, sem hesitação, no primado da iniciativa privada e na utilidade da
otimização dos recursos, e portanto com enorme facilidade ultraja o Estado
quando este, ao interferir com a liberdade e o interesse individuais, interseta
o livre funcionamento dos mercados. É deste modo que tem geralmente funcionado a
perspetiva dicotómica no nível mais primário e tosco da política, ou melhor, da
politiquice.
Bem diferentes, a esquerda e a
direita resilientes e modernas – que, como se compreende, somente as
sociedades eminentemente democráticas e civilizacionais conhecem –, devem
não só sopesar os critérios acima referidos da
equidade – materializada na sustentabilidade do bem comum, no reforço
da responsabilidade social do Estado e na redução das desigualdades entre os
cidadãos – e da eficiência – consubstanciada no respeito
pelo bem individual, na promoção dos direitos e das liberdades dos cidadãos e
na defesa da iniciativa privada –, como também mensurá‑los adequadamente e
transmitir os custos e os benefícios (não apenas económicos) decorrentes das
suas opções. Isso corresponderia, de facto, a defender conscientemente
políticas de esquerda ou de direita.
A verdade democrática
A esquerda e a direita a que se tem
assistido (pelo menos em Portugal) são frequentemente demagógicas e
incoerentes; falta‑lhes verdade (democrática, e não dogmática). Por exemplo,
situando‑se o cavalo de batalha, sobretudo no reduto da esquerda, na redução
das desigualdades de rendimentos e no aumento das oportunidades, não se percebe
porque ela não reconhece a importância de taxar as heranças, tanto mais que as
desigualdades justificadas pelo esforço e pelo mérito individuais são muito
menos iníquas (desde logo fiscalmente) do que as desigualdades herdadas do berço e nascidas do mérito
alheio. A primeira forma de desigualdades de rendimentos é a Estrada da Beira,
enquanto a segunda é a beira da estrada. Parecem semelhantes, mas são
completamente diferentes, às vezes até em liberdade e honra.
Parece que a dita esquerda, que por
excelência encabeça as fileiras quando cisma que alguém irá desfraldar a bandeira
do humanismo (mas sustentado com equidade), é lamentavelmente pouco ativa e
bastante seletiva quando esse humanismo não se enleia no oportunismo
individual das massas. Esta última expressão parece contraditória, mas foi
intencionalmente empregue, para exprimir que para a esquerda há vários níveis
de humanismo. Neste aspeto particular faz lembrar a atuação recorrente de
vários sindicatos, que tratam com diferente desvelo os trabalhadores que lhes
estão afiliados.
Para além do mais, e sendo óbvio
que o peso excessivo (e insustentável) da dívida pública nacional sacrifica
acrescidamente os mais desfavorecidos e as pessoas das classes sociais mais
baixas (e, como os estudos demonstram, dos seus descendentes vindouros), não se compreende o porquê de essa dita esquerda – ou centro‑esquerda,
ou centro‑centro‑esquerda, ou centro‑esquerda‑esquerda – rejeitar
as medidas fraturantes que passam por tributar o património e a riqueza. Não se
vislumbra réstia de justificação lógica para que ela ainda não tenha
interiorizado que a tributação será excecional, levada a cabo unicamente para
atingir os dignos objetivos da diminuição drástica da aterradora dívida pública
e da correspondente urgente libertação de recursos, e assim possibilitar, sem
egoísmos nem egocentrismos, o fomento do crescimento e do emprego, o que
beneficia as gerações atuais e – não menos importante – futuras.
Logo, se existisse verdade
democrática e fosse óbvia a separação entre a esquerda e a direita, os partidos
políticos oponentes não convergiriam, mesmo que discreta e sub‑repticiamente,
no repúdio das duas medidas evocadas nos parágrafos precedentes – taxar
(regularmente) a transmissão de heranças e (excecionalmente) o património e a
riqueza acumuladas –, essenciais para a esperança e o amanhã nacionais.
Estas medidas estão melhor fundamentadas no documento «Zerar pararessuscitar e criar oportunidades sustentáveis», de 13 de dezembro de 2013,
publicado em 19 de janeiro do ano seguinte.
Ademais, no caso português, se
surgisse uma ínfima preocupação com a verdade democrática, então há muito que a
lei eleitoral teria sido alterada, de maneira a acomodar a multiplicidade de
pensamentos políticos. A maioria do eleitorado não se satisfaz por saber se
existe esquerda ou direita, e ainda menos pretende ficar refém de qualquer
partido que se julga dono de uma parte (ou da totalidade) da esquerda ou da
direita. Deseja tão‑só optar, e ver o resultado das suas opções, materializado
em número de deputados, preferencialmente fieis às promessas proferidas pelos
partidos nas campanhas eleitorais.
Em Portugal, os 230 deputados
eleitos para a Assembleia da República estão atualmente divididos em seis cores
partidárias – PSD, PS, BE, CDU, CDS e PAN –, façanha apenas
superada logo nas primeiras eleições legislativas do pós‑25 de Abril (contendo
na altura a Assembleia Constituinte sete forças políticas). Na Holanda, os 150
deputados da Câmara dos Representantes (elegível para formar Governo) refletem,
após as recentes eleições, 13 forças políticas – possível
porque, ao contrário do que sucede no território das quinas, nos Países Baixos
há somente um círculo eleitoral para efeitos do apuramento da representação
proporcional: o círculo nacional.
Como é demonstrado no texto «Abstenção
lusitana – Quo vadis?», publicado em 19 e 20 de outubro de 2015,
se em Portugal se transformasse a miríade de 22 círculos eleitorais num único,
passaria a haver 15 partidos com assento parlamentar, o que conferiria
vitalidade e dignidade a todas as vozes, independentemente do nome de batismo
que os seus dirigentes (im)pusessem, e das avaliações e formulações subjetivas
quanto ao índice democrático dessas vozes. Como nesse texto de outubro de 2015
se esclarece, não é preciso entrar e cair no sofisma da dicotomia entre
esquerda e direita para ser totalmente possível conjugar governabilidade com
diversidade política. É urgente, sim, sair de tamanho sofisma. Em democracia, a
sonolência prolongada do eleitorado (que, muitas vezes com maior legitimidade
sentimental ou emocional do que lógica ou racional, está preso, quer à esquerda
quer à direita) conduz, a prazo, tanto ao aumento da
abstenção – comprovado pelos dados –, como ao esvaziamento da
democracia – o que conduzirá por sua vez à sua consequente
infertilidade.
Realce‑se que a mera existência de
um pluralismo parlamentar – por oposição ao bipolarismo forçado – confere
profundidade democrática, mas não é condição suficiente para assegurar verdade
democrática – a qual resulta, como oportunamente explanado, da
combinação dos critérios da equidade e da eficiência. Importa até reconhecer
que, não tendo os partidos qualquer preocupação com uma verdade de jaez tão
honrado como a democrática, é inevitável que, com o aumento do número de
partidos com representação parlamentar, cresça a política‑espetáculo – i.e.,
a politiquice –, e não a política‑utilidade.
Assim, quando a política é honesta
e responsavelmente exercida, podem existir tantos «partidos da verdade» – referência
explícita ao antepenúltimo parágrafo da primeira secção – quantas as
forças políticas que se apresentem (ao eleitorado) em função das combinações
resultantes dos diferentes pesos atribuídos à equidade e à eficiência. Face ao
exposto, estando as propostas políticas solidamente baseadas na verdade
democrática, nenhum partido e nenhum eleitor é mais democrático do que outro - e mesmo não havendo verdade democrática.
Deveras mais útil do que defender a
esquerda ou a direita, será pugnar pela verdade, senão a ilustre verdade
democrática, ao menos – retome‑se a parte final do quinto parágrafo
anterior – a cívica verdade eleitoral, antecâmara da primeira. «Dos
políticos exigem‑se ações equilibradas, que sejam o mais possível tecnicamente
corretas e socialmente equitativas. O pior de tudo é, antes das eleições,
anunciar‑se um programa hipnotizante e bem embrulhado e, após o poder estar
conquistado, tomarem‑se decisões opostas às propagandeadas – indigna
conquista do poder.» – vide «Liverdade», post publicado em 3 de maio de 2014. Se ao menos os cidadãos exigissem a verdade eleitoral, há muito que a esquerda e a direita
poderiam ser minimamente verdadeiras (na perspetiva democrática).
Nas democracias do séc. XXI, a
pergunta lacónica «Esquerda e direita?» fará sentido – ou antes:
justificar‑se‑á – para quem (ainda) estiver aferrado às ideologias
dogmáticas e à vontade cega que elas carregam. Quando a tónica é posta, não nas
ideologias e nas demagogias, mas no pensamento e na verdade criadora que dele
decorre, desaparece a maior parte do sentido que a pergunta aparenta conter.
Quem pensar (na) verdade antes de tentar responder àquela pergunta, verificará
que, nas sociedades do séc. XXI, a esquerda e a direita são faces da mesma
moeda, una e indivisível, cujo valor será tanto maior quanto mais elas se conhecerem
e respeitarem, em prol da virtuosa nação e da sua nobre e pobre gente.
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