Conceitos ora rígidos, ora flexíveis
Apesar de a pergunta inscrita na
epígrafe do presente documento confinar‑se ao séc. XXI – «Esquerda
e direita no séc. XXI?» –, recue‑se cinco décadas, até 1967, à guisa
de introdução, e pouse‑se a análise em dois espaços: Portugal e União
Soviética. Para simplificar, foque‑se a atenção na liberdade de expressão, um
dos basilares direitos cívicos. Aos olhos de cada um dos regimes desses dois
Estados soberanos, como foi qualificado um cidadão que pugnou por tal
liberdade? E o que lhe aconteceu por pretender pensar livremente?
Tanto ao cidadão português como ao
soviético esteve reservada idêntica sorte: a prisão e, consoante a intensidade
do anseio de liberdade, a tortura e a morte. A única diferença residiu nos
rótulos colocados a esses dois fraternos utópicos da liberdade, apenas porque
os regimes em apreço situavam‑se em lados diametralmente
opostos – opostos em termos ideológicos, embora coincidentes quanto à
violação da liberdade de expressão (e demais géneros de liberdade). Para o
modelo político de Salazar, um indivíduo que sonhasse sequer com a liberdade
era intitulado de comunista, ao passo que, para o modelo de Brejnev, era
apodado de fascista.
Mantenha‑se o relógio parado em
1967. Para o regime de direita vigente na lusitana Metrópole, os combatentes
africanos que lutavam honradamente contra as tropas portuguesas na guerra
colonial e reivindicavam o (tardio) direito à autodeterminação eram
considerados como sendo a encarnação do Diabo, vestido de vermelho e adornado
com a foice e o martelo ao peito. Nem era necessário ser combatente e amigo do
seu destino. Os seres mais pacíficos, que ao mínimo sinal de ordem e respeito
imposto pelo regime salazarista ousassem pestanejar, eram diabolizados, por
muito distante que fosse o ponto do Ultramar onde se encontravam.
Passadas duas décadas, em 1987, já
com a independência das colónias assegurada, e estando ao rubro as guerras
civis angolana e moçambicana, o binómio esquerda‑direita nos dois países
lusófonos espelhava a oposição inflamada de ideias intrínsecas ao período da
Guerra Fria. As ideologias que se digladiavam nessas guerras civis variavam
consoante as forças beligerantes envolvidas fossem apoiadas por países do bloco
soviético ou do norte‑americano.
Avançando mais duas décadas, chega‑se
ao séc. XXI. Em Angola, provavelmente os mesmos «combatentes africanos que
lutavam honradamente contra as tropas portuguesas na guerra
colonial» – penúltimo parágrafo –, outrora acusados de serem de
esquerda (pelo então dominante modelo político de direita), incriminavam os
seus patrícios de serem de direita, pelo simples motivo de estes se terem atrevido
a exigir o elementar mas augusto direito de liberdade de expressão. Ou seja, os
conceitos de esquerda e de direita eram rígidos; e paradoxalmente relativos,
pois dependiam não dos valores e das ideias que cada conceito incorporava, mas
tão‑somente da relação de forças entre o poder instituído e as vozes
discordantes. Era assim em 2007, e assim continua a ser em 2017, em Angola e não só.
Portanto, parece que o significado
dos vocábulos «esquerda» e «direita» será – ainda que inútil e
deturpadamente – inequívoco em duas situações. São elas: ou em
regimes totalitários ou ditatoriais, de esquerda ou de direita; ou em regimes
híbridos que, sendo democráticos pelo facto de estarem legitimados pelo
plebiscito popular, tardam em conseguir compreender o significado da diferença
de opiniões e da liberdade de pensamento.
No séc. XXI e nas sociedades
eminentemente democráticas e civilizacionais, onde o pluralismo político não se
restringe ao populista "centrão" indefinido – por outras palavras: onde
não vinga o bipartidarismo exclusivo –, os conceitos de esquerda e de
direita são flexíveis, e por isso difíceis de identificar a olho nu, pelo que
revestem pouca (ou nenhuma) utilidade. O centro é o mesmo, pelo menos
semanticamente, que o centro‑esquerda e o centro‑direita, que por sua vez não
se distinguem nem do centro‑centro‑esquerda e do centro‑centro‑direita, e nem
do centro‑esquerda‑esquerda e do centro‑direita‑direita. Nas outras sociedades
(explicitadas no parágrafo anterior) – i.e., nas que não são
democráticas, ou que sobrevivem com a cegueira patológica de a sua democracia
não reconhecer o âmbito dos direitos humanos –, tais conceitos são rígidos
e totalmente erróneos, pelo que a questão «Esquerda e direita no
séc. XXI?» será pior do que inútil; será prejudicial, por dar azo à
confusão e à contrainformação.
O anacronismo dos conceitos
Se até tempos idos os termos
«esquerda» e «direita» poderiam ser claros – porque referiam‑se a
realidades concretas e delimitadas –, hoje são bastante dúbios, dada a
panóplia de ideias que cada um deles introduz, ao ponto de, na essência, haver
raríssimas pessoas que sejam genuinamente de esquerda ou de direita, à luz da
ditosa verdade democrática que hoje e no futuro aqueles termos devem carregar.
Soa a provocação esta afirmação. Todavia, provocatória é a associação que costuma fazer-se – em rigor a associação tem sido incomparavelmente mais
usada e abusada pela esquerda do que pela direita –, de dividir a multidão
de um território em dois grupos, o dos pobres (e remediados) e o dos ricos (e
privilegiados), e afetar o primeiro à esquerda e o segundo à direita.
Sempre houve quem forçasse o
raciocínio de ligar a horda aos partidos da esquerda, e o escol aos da direita.
Mas nunca foi assim que a esquerda e a direita funcionaram. Mais: há quase dois
séculos e meio, altura em que, à luz dos registos históricos, nasceram
oficialmente os antagónicos conceitos de esquerda e de
direita – aquando da Revolução Francesa –, a esquerda era a
fação dos republicanos, e a direita a dos monárquicos. Já não é assim.
Em seguida, a divisão passou pelo
posicionamento dos cidadãos quanto ao reconhecimento da religião e do papel de
Deus: os laicos eram os esquerdistas – para Karl Marx, a religião era
o ópio do povo –, e os religiosos (e aderentes ao catolicismo) eram os direitistas.
Já é quase nada assim. Mais tarde, a separação passou para as áreas das classes
sociais e das formas de propriedade dos meios de produção: os trabalhadores (ou
empregados), adeptos das nacionalizações das empresas e das coletivizações dos
meios de produção, eram colocados no lado da esquerda; e os patrões (ou
empregadores), partidários da iniciativa privada e da privatização dos meios de
produção, eram encaminhados para o lado da direita. Já é (muito) pouco assim.
Aliás, se continuasse assim, e atenta
a desproporção – inevitável, cumpre sublinhar – entre o
número de pobres e o de ricos, jamais a direita chegaria a ver a luz do dia. Se
continuasse assim, a esquerda há muito estaria sepultada em regimes
monárquicos. Se continuasse assim, em regimes (sejam republicanos ou
monárquicos) cuja prática católica não está disseminada pela maioria das
pessoas, as sementes da direita seriam irremediavelmente estéreis. Se
continuasse assim, inclusive em regimes monárquicos ou com forte implantação
católica, a esquerda dizimaria completamente a direita, atenta a dimensão
desproporcional entre os empregados e os empregadores. Ao invés, se a divisão
entre a esquerda e a direita fosse traçada sob o critério da intervenção direta
do Estado (enquanto agente produtivo), a esquerda teria de
renascer - dado o peso (quase) negligente do setor empresarial estatal, ante o do setor privado. Enfim: há que mudar de bitola, ou melhor, substituir os conceitos por
algo que incorpore lógica.
Dado que o espaço dos conceitos tem
vindo a ser profundamente modificado, torna‑se difícil defini‑los. Face ao que
a evolução da realidade tem oferecido, constata‑se que eles não passam
geralmente de placebos para ex(er)citar a alma dos eleitoreiros, por serem o
vapor que move a politiquice. Importa apurar o que, na essência, divide os
cidadãos no campo político, no pressuposto de que estes sabem conviver em
democracia – sublinhe‑se que é fulcral ter sempre presente a condição
de existência de regimes eminentemente democráticos e civilizacionais, o alfa e
o ómega para as abordagens reformuladas (de esquerda e de direita) revestirem
algum sentido, o sentido sustentável.
Quando o bálsamo da praxis
democrática se impõe, a esquerda e a direita entremeiam‑se e tornam‑se quase
impercetíveis – a segunda frase do último parágrafo da secção
anterior, que no fundo acaba por definir o "centrão", traduz um exemplo caricato do que pode ser a esquerda (ou a direita) num quadro de bipolarismo monopolista ou oligopolista.
Quando o bálsamo é natural – o da verdade democrática –, esquerda
e direita são os polos da mesma corrente energética. Elas reconhecem, mas não
assumem, que são o hardware e o software da harmonia democrática, sem a qual a máquina social entra
em disfunção. São como dois amantes inseparáveis, e de vida flexível,
que se encontram na calada da noite. A vida rígida, igualmente assente
em conceitos rígidos, é para diferentes tipos de sociedades – a anos‑luz
da verdade democrática –, em desuso ou em vias de extinção no
séc. XXI.
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