Esquerda e direita no
séc. XXI? – Pergunta pouco útil, ou talvez pior do que
inútil (#)
Conclusões e outras considerações
Inicie‑se o documento pelo
final – as conclusões (acrescidas de outras considerações) –,
com o intuito de tentar diminuir as reações negativas que o seu (sub)título
poderá causar. Esta secção, servida como acepipe mas preparada para acabar em
sobremesa, seria suficiente para abordar o assunto em presença, até porque
representa cerca de 1/4 do total do texto. Porém, há momentos em que, justificadamente
e em diversas circunstâncias, impõe‑se substrato adicional. A partir da segunda
secção – posts referentes
às partes II/III e III/III – entrar‑se‑á no núcleo do substrato.
Nos regimes totalitários ou
ditatoriais, bem como nos regimes híbridos, esquerda e direita são palavras
rígidas, atendendo a que o epicentro da política é o poder da autoridade e da
força. Ao invés, nos regimes eminentemente democráticos e civilizacionais,
esquerda e direita são palavras flexíveis, visto que o epicentro da política é
o poder da verdade e da razão. Encontrando‑se nos antípodas esses dois grupos
de regimes, é aceitável admitir que os dois tipos de poder que lhes subjazem
estejam igualmente afastados à mesma distância.
Nos regimes totalitários ou
ditatoriais, e nos regimes híbridos, o poder da autoridade e da força é
autoexplicativo. Isso não sucede com o poder da verdade e da razão, aplicável
aos regimes eminentemente democráticos e civilizacionais. De qualquer modo, a
última secção – «A verdade democrática» – aflorará esse
segundo tipo de poder. Ainda assim, e porque subsistirão dúvidas acerca do
alcance das expressões – na prática sinónimas – «poder da
verdade e da razão» e «verdade democrática», pode trazer‑se à colação o
documento septipartido «Da semente da verdade ao fruto da liverdade»,
publicado entre 25 de abril e 1 de maio de 2016. A política sem
verdade – repita‑se: verdade democrática (e não verdade dogmática) – cria
metástases, e transforma‑se gradualmente em politiquice.
Em democracia, o diálogo entre a
esquerda e a direita sempre se manteve – se com ou sem utilidade, não
importa por ora. E não é preciso dispor de poderes premonitórios para afirmar
que eternamente se manterá, no séc. XXI e em qualquer outro século. É
certo que a esquerda foi e será mais progressista, e a direita foi e será mais
conservadora, o que aliás reveste um grande contributo (de uma e de outra) para
o amadurecimento e o desenvolvimento das sociedades. Porém, impõe‑se a dúvida
sobre a função prática da esquerda e da direita nos dias de hoje. Os sonhos
coletivos são a especialidade da esquerda; os cifrões individuais são a
predileção da direita.
O problema é que assiste‑se regularmente
a um diálogo de surdos, porquanto estão presentes dois vícios: a esquerda
não quer ou não sabe fazer contas que mensurem corretamente o impacto
financeiro das suas ideias tendentes à promoção do bem coletivo; e a direita
não tem ideias para promover o bem coletivo, mas tem permanente vontade e
capacidade para acertar nas contas em seu proveito, e para ocultar que as
soluções por si preconizadas são bastante melhores para o indivíduo do que para
o coletivo. Tais vícios extravasam a atuação dos partidos políticos;
abrangem a hipocrisia crónica vincada em diversas associações sindicais e
patronais.
A esquerda tem feito gáudio em
autoclassificar‑se o baluarte dos pobres. Não constituirá exagero afirmar que,
ao início, a esquerda tinha um pé nos pobres e o outro nos republicanos. Depois
ficou com um pé nos republicanos e o outro nos agnósticos. Seguidamente manteve
um pé nos agnósticos e o outro nos trabalhadores. E por fim almejou fechar o
círculo, instalando um pé nos trabalhadores e o outro novamente nos pobres.
A anterior imagem da passagem de pé
em pé serve unicamente para ilustrar a evolução do conceito
«esquerda» – consoante as circunstâncias e os interesses em cada
momento –, e portanto não deve ser entendida como uma tentativa de criar
segmentos forçados e artificiais da realidade, como se os conjuntos dos pobres,
dos republicanos, dos agnósticos e dos trabalhadores fossem entre si disjuntos.
Análoga imagem pode ser esboçada para a evolução do conceito «direita»: terá
passado dos ricos para os monárquicos, dos monárquicos para os crentes, dos
crentes para os patrões, e dos patrões para os ricos.
A tradicional dicotomia esquerda‑direita
aplicar‑se‑á num mundo a duas dimensões e pintado exclusivamente com duas
cores, como tem sucedido em inúmeras ocasiões ao longo do tempo e em várias
geografias. Nesse mundo restrito, a esquerda e a direita alimentam‑se de
incoerência – incoerência de argumentos frequentemente falaciosos,
como os três parágrafos precedentes indiciam. No jogo político de diferenças de
pontos de vista, onde os cidadãos satisfazem‑se plenamente com a alternativa
dual – cingida ao claro e ao escuro, ou ao preto e ao
branco – que lhes é oferecida e permitida, o papel de árbitro é autoritariamente
assumido pela demagogia.
Assim, resta concluir que a
tradicional dicotomia esquerda‑direita perde o sentido num mundo
pluridimensional, como sucede em tantos países, onde os parlamentos nacionais
são representados por uma paleta de cores para muitos gostos, consoante as
opções manifestadas pelo eleitorado e respeitadas em conformidade pela lei
eleitoral. Nesses países, o jogo político de diferenças de pontos de vista é
regulado sobriamente não pela demagogia partidária, mas antes pela verdade
democrática.
Quando uma sociedade comunga
sãmente com a verdade democrática, a dita esquerda consegue ser coerente
consigo própria, e o mesmo sucede com a direita, pois a coerência é inerente à verdade democrática. Mais: as duas estão fadadas
uma para a outra, em prol do bem coletivo (ou comum) citado no quinto
parágrafo, pelo que a esquerda não pode advogar soluções baseadas na equidade
sem ter em conta o critério básico da eficiência, nem a direita pode defender
soluções orientadas pela eficiência sem acautelar o critério fundamental da
equidade. Trata‑se de um problema de otimização, em que a esquerda procura
maximizar a equidade, condicionada à restrição da eficiência, e a direita tenta
maximizar a eficiência, sujeita à restrição da equidade.
Finalizando: em sociedades
exigentes do séc. XXI – associadas a regimes eminentemente
democráticos e civilizacionais –, os partidos da esquerda (dando primazia
à equidade) ou da direita (concedendo prioridade à eficiência) que se prezem
têm impreterivelmente de transportar uma característica comum: serem, acima de
tudo, partidos da verdade. Os partidos que usam demagogicamente as meias
verdades ou as mentiras não exercem política, mas sim politiquice. E os
indivíduos seguidores desses partidos não são bem eleitores; são mais
eleitoreiros – o mencionado documento «Da semente da verdade ao
fruto da liverdade» explicita estas ideias incomuns.
Logo, parece que a insistência em
continuar a resumir o debate político ao confronto anacrónico (e por vezes
decadente) entre esquerda e direita – quando vazias de verdade – não
vai além do mero objetivo de servir de passatempo, para distração da população.
Objetivo fútil, dado que um número crescente de eleitores já tem suficiente
maturidade democrática para repudiar o entretenimento político previsível e
inútil, e para reclamar a salientada verdade democrática. Esclareça‑se esta
questão, para evitar equívocos interpretativos.
Na arena política – ou politiqueira, para ser mais
rigoroso – em que os cidadãos aceitam ou rejeitam as opções tomadas não
pela sua pertinência e viabilidade, mas tão‑só em função dos partidos que as
tomam, é normal que a verdade democrática viva órfã e não singre. Não é
invulgar que, no terreno dominado pelo bipartidarismo, uma determinada medida
seja ajuizada de positiva ou de negativa pelo mesmo partido consoante,
respetivamente, este esteja no poder ou na oposição. Daí a previsibilidade e a
inutilidade do bipartidarismo habitual (ou do "centrão" hegemónico), por oposição
à verdade democrática reclamada por um número crescente de
eleitores – portanto, não eleitoreiros.
(#) Cumpre agradecer o valioso contributo fornecido, sob a forma de espírito crítico, pela Helena Matilde Jacques Feliciano. O acolhimento das suas principais dúvidas e a resposta a algumas das suas objeções traduziram-se na melhoria do texto, tendo a redação final ficado – se bem que (44%) mais extensa – incomparavelmente bastante mais clara e fundamentada. No entanto, do acolhimento e da resposta atrás mencionados, não pode concluir-se que a Helena se identifique com o teor do documento.
Sem comentários:
Enviar um comentário