Fórum de Reflexão Económica e Social

«Se não interviermos e desistirmos, falhamos»

sexta-feira, março 31, 2017

Esquerda e Direita no Século XXI – Reflexões (V) (parte I/III)


Esquerda e direita no séc. XXI? – Pergunta pouco útil, ou talvez pior do que inútil (#)


Conclusões e outras considerações
Inicie‑se o documento pelo final – as conclusões (acrescidas de outras considerações) –, com o intuito de tentar diminuir as reações negativas que o seu (sub)título poderá causar. Esta secção, servida como acepipe mas preparada para acabar em sobremesa, seria suficiente para abordar o assunto em presença, até porque representa cerca de 1/4 do total do texto. Porém, há momentos em que, justificadamente e em diversas circunstâncias, impõe‑se substrato adicional. A partir da segunda secção – posts referentes às partes II/III e III/III – entrar‑se‑á no núcleo do substrato.
Nos regimes totalitários ou ditatoriais, bem como nos regimes híbridos, esquerda e direita são palavras rígidas, atendendo a que o epicentro da política é o poder da autoridade e da força. Ao invés, nos regimes eminentemente democráticos e civilizacionais, esquerda e direita são palavras flexíveis, visto que o epicentro da política é o poder da verdade e da razão. Encontrando‑se nos antípodas esses dois grupos de regimes, é aceitável admitir que os dois tipos de poder que lhes subjazem estejam igualmente afastados à mesma distância.
Nos regimes totalitários ou ditatoriais, e nos regimes híbridos, o poder da autoridade e da força é autoexplicativo. Isso não sucede com o poder da verdade e da razão, aplicável aos regimes eminentemente democráticos e civilizacionais. De qualquer modo, a última secção – «A verdade democrática» – aflorará esse segundo tipo de poder. Ainda assim, e porque subsistirão dúvidas acerca do alcance das expressões – na prática sinónimas – «poder da verdade e da razão» e «verdade democrática», pode trazer‑se à colação o documento septipartido «Da semente da verdade ao fruto da liverdade», publicado entre 25 de abril e 1 de maio de 2016. A política sem verdade – repita‑se: verdade democrática (e não verdade dogmática) – cria metástases, e transforma‑se gradualmente em politiquice.
Em democracia, o diálogo entre a esquerda e a direita sempre se manteve – se com ou sem utilidade, não importa por ora. E não é preciso dispor de poderes premonitórios para afirmar que eternamente se manterá, no séc. XXI e em qualquer outro século. É certo que a esquerda foi e será mais progressista, e a direita foi e será mais conservadora, o que aliás reveste um grande contributo (de uma e de outra) para o amadurecimento e o desenvolvimento das sociedades. Porém, impõe‑se a dúvida sobre a função prática da esquerda e da direita nos dias de hoje. Os sonhos coletivos são a especialidade da esquerda; os cifrões individuais são a predileção da direita.
O problema é que assiste‑se regularmente a um diálogo de surdos, porquanto estão presentes dois vícios: a esquerda não quer ou não sabe fazer contas que mensurem corretamente o impacto financeiro das suas ideias tendentes à promoção do bem coletivo; e a direita não tem ideias para promover o bem coletivo, mas tem permanente vontade e capacidade para acertar nas contas em seu proveito, e para ocultar que as soluções por si preconizadas são bastante melhores para o indivíduo do que para o coletivo. Tais vícios extravasam a atuação dos partidos políticos; abrangem a hipocrisia crónica vincada em diversas associações sindicais e patronais.
A esquerda tem feito gáudio em autoclassificar‑se o baluarte dos pobres. Não constituirá exagero afirmar que, ao início, a esquerda tinha um pé nos pobres e o outro nos republicanos. Depois ficou com um pé nos republicanos e o outro nos agnósticos. Seguidamente manteve um pé nos agnósticos e o outro nos trabalhadores. E por fim almejou fechar o círculo, instalando um pé nos trabalhadores e o outro novamente nos pobres.
A anterior imagem da passagem de pé em pé serve unicamente para ilustrar a evolução do conceito «esquerda» – consoante as circunstâncias e os interesses em cada momento –, e portanto não deve ser entendida como uma tentativa de criar segmentos forçados e artificiais da realidade, como se os conjuntos dos pobres, dos republicanos, dos agnósticos e dos trabalhadores fossem entre si disjuntos. Análoga imagem pode ser esboçada para a evolução do conceito «direita»: terá passado dos ricos para os monárquicos, dos monárquicos para os crentes, dos crentes para os patrões, e dos patrões para os ricos.
A tradicional dicotomia esquerda‑direita aplicar‑se‑á num mundo a duas dimensões e pintado exclusivamente com duas cores, como tem sucedido em inúmeras ocasiões ao longo do tempo e em várias geografias. Nesse mundo restrito, a esquerda e a direita alimentam‑se de incoerência – incoerência de argumentos frequentemente falaciosos, como os três parágrafos precedentes indiciam. No jogo político de diferenças de pontos de vista, onde os cidadãos satisfazem‑se plenamente com a alternativa dual – cingida ao claro e ao escuro, ou ao preto e ao branco – que lhes é oferecida e permitida, o papel de árbitro é autoritariamente assumido pela demagogia.
Assim, resta concluir que a tradicional dicotomia esquerda‑direita perde o sentido num mundo pluridimensional, como sucede em tantos países, onde os parlamentos nacionais são representados por uma paleta de cores para muitos gostos, consoante as opções manifestadas pelo eleitorado e respeitadas em conformidade pela lei eleitoral. Nesses países, o jogo político de diferenças de pontos de vista é regulado sobriamente não pela demagogia partidária, mas antes pela verdade democrática.
Quando uma sociedade comunga sãmente com a verdade democrática, a dita esquerda consegue ser coerente consigo própria, e o mesmo sucede com a direita, pois a coerência é inerente à verdade democrática. Mais: as duas estão fadadas uma para a outra, em prol do bem coletivo (ou comum) citado no quinto parágrafo, pelo que a esquerda não pode advogar soluções baseadas na equidade sem ter em conta o critério básico da eficiência, nem a direita pode defender soluções orientadas pela eficiência sem acautelar o critério fundamental da equidade. Trata‑se de um problema de otimização, em que a esquerda procura maximizar a equidade, condicionada à restrição da eficiência, e a direita tenta maximizar a eficiência, sujeita à restrição da equidade.
Finalizando: em sociedades exigentes do séc. XXI – associadas a regimes eminentemente democráticos e civilizacionais –, os partidos da esquerda (dando primazia à equidade) ou da direita (concedendo prioridade à eficiência) que se prezem têm impreterivelmente de transportar uma característica comum: serem, acima de tudo, partidos da verdade. Os partidos que usam demagogicamente as meias verdades ou as mentiras não exercem política, mas sim politiquice. E os indivíduos seguidores desses partidos não são bem eleitores; são mais eleitoreiros – o mencionado documento «Da semente da verdade ao fruto da liverdade» explicita estas ideias incomuns.
Logo, parece que a insistência em continuar a resumir o debate político ao confronto anacrónico (e por vezes decadente) entre esquerda e direita – quando vazias de verdade – não vai além do mero objetivo de servir de passatempo, para distração da população. Objetivo fútil, dado que um número crescente de eleitores já tem suficiente maturidade democrática para repudiar o entretenimento político previsível e inútil, e para reclamar a salientada verdade democrática. Esclareça‑se esta questão, para evitar equívocos interpretativos.
Na arena política – ou politiqueira, para ser mais rigoroso – em que os cidadãos aceitam ou rejeitam as opções tomadas não pela sua pertinência e viabilidade, mas tão‑só em função dos partidos que as tomam, é normal que a verdade democrática viva órfã e não singre. Não é invulgar que, no terreno dominado pelo bipartidarismo, uma determinada medida seja ajuizada de positiva ou de negativa pelo mesmo partido consoante, respetivamente, este esteja no poder ou na oposição. Daí a previsibilidade e a inutilidade do bipartidarismo habitual (ou do "centrão" hegemónico), por oposição à verdade democrática reclamada por um número crescente de eleitores – portanto, não eleitoreiros.


(#) Cumpre agradecer o valioso contributo fornecido, sob a forma de espírito crítico, pela Helena Matilde Jacques Feliciano. O acolhimento das suas principais dúvidas e a resposta a algumas das suas objeções traduziram-se na melhoria do texto, tendo a redação final ficado – se bem que (44%) mais extensa – incomparavelmente bastante mais clara e fundamentada. No entanto, do acolhimento e da resposta atrás mencionados, não pode concluir-se que a Helena se identifique com o teor do documento.

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