Fórum de Reflexão Económica e Social

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sexta-feira, maio 19, 2017

Esquerda e Direita no Século XXI - To be or not to be - Reflexões (VI) (parte III/III)


PARTE III: A ESQUERDA E A DIREITA NO SÉCULO XXI

O que se pode entender por Esquerda e Direita nos nossos dias? A resposta é importante para se justificar ou refutar mais concretamente a persistência dessa polarização.

É, pois, necessária uma redefinição atualizada de esquerda e de direita, como tendências de pensamento, posturas face à realidade. Parece-me que um elemento básico reside – ainda e sempre – na aceitação, justificação e defesa (pela direita) dos privilégios associados a estatutos sociais e económicos, assim como na relevância dos respetivos símbolos; ou não (pela esquerda).

A chamada “direita liberal” recupera o princípio máximo da liberdade individual como motor criativo da sociedade, com particular incidência na área dos negócios. É uma evolução intelectual do conceito de self made man, de contornos eminentemente monetários e económicos – estimulando a ascensão social pelo empreendedorismo e pelo retorno financeiro que este traz, quando (supostamente) bem conduzido. Mas a realidade e a literatura estão cheias de “desvios” que tal perspetiva da vida pode trazer: “Chegarei lá, no matter what!”, assegura-se o self made man. Ora... “no matter what” traz frequentemente, como outro lado da moeda liberal, grandes problemas, para o próprio e, às vezes, para a família e para outros, “esmagados” pelos passos de gigante do empreendedor.

Nesta perspetiva, o Estado é quase sempre visto como um empecilho, algo que deve ter uma dimensão e uma capacidade de intervenção diminutas, que não atrapalhem, que não criem obstáculos à dinâmica empreendedora dos que “querem fazer”. Acontece que, hoje, os que “querem fazer” são também os inventores e usuários das farsas produtivas denominadas “produtos financeiros”. Ora, não terá sido a especulação nestas abstrações aberrantes que, de braço dado com a corrupção, levou à ruina, ou quase, boa parte da população mundial? Deverão os reais e falsos “empreendedores” ter rédea solta? Deverá o Estado dar-lhes a bênção, “no matter what”, porque lhes atribui a criação de riqueza? Será natural e, portanto, aceitável a progressiva concentração de riqueza no Mundo? Deverá ficar impune a exploração infame dos “outros”, sem sequer uma restrição de idade?

Falei atrás em evolução intelectual porque, muitas e muitas vezes, o self made man era homem de baixa formação cultural e intelectual, que tendia a desprezar o que não fosse o “negócio”. Não deve ser à toa que no Brasil, em tempos terra de eleição para estas pessoas, o significado de “negócio” aí se tenha generalizado com o significado de “coisa”.

Claro que a liberdade criativa, vital agente de transformação, a sua potencialidade e força geradora de novas realidades, são fundamentais para os indivíduos e as sociedades humanas. Não podem, de modo algum, ser subestimadas. Esse foi, creio, um dos grandes problemas da doutrina comunista, em que até a liberdade criativa dos artistas acabou por ser submetida ao pseudosserviço da revolução e do proletariado, culminando no denominado “realismo socialista” – termos que, se bem observados, resumem o espartilho a que os artistas se deveriam submeter – e nos atraentes grafismos dos cartazes de propaganda representando um sorridente Líder e um radioso Mundo Melhor. Que ilusão e manipulação!

A liberdade criativa é fundamental em todos os aspetos da ação humana e, só por isso, faz explodir as amarras do materialismo. A “liberdade” necessita de condições materiais, naturalmente, mas não se restringe a elas. A liberdade artística, por exemplo, extravasa largamente o realismo, só pode subsistir e criar asas através do chamado (e tantas vezes desprezado) idealismo. O valor – se tal existe – de um obra artística não se pode medir realisticamente, materialmente. Não se trata, pois, de um bem estritamente material, nem na sua criação nem na sua “apropriação” pela comunidade. O mesmo pode ser dito das obras científicas.

 

Ou seja: a esquerda, no século XXI, precisa de ser menos “materialista” e mais “idealista”. O idealismo foi lançado às urtigas do descrédito pelo materialismo dominante, à esquerda, desde Marx ou mesmo antes. A grande preocupação, o grande objetivo revolucionário da filosofia de então era contribuir para mudar o Mundo e não apenas para o interpretar; preocupação bastante compreensível e louvável, face às condições miseráveis, muitas vezes sub-humanas, em que vivia e trabalhava a maioria da população, particularmente o proletariado.

Contudo, século e meio passado sobre essa época, que gerou ideologias comunistas e anarquistas, tal império filosófico de feição positivista – fundamentado quase estritamente nas “condições materiais” da existência e na rejeição do “idealismo alienante” propalado pelos exploradores – deve perder autoridade. Deve fazê-lo, como linha inspiradora da esquerda, porque foi a semente do autoritarismo que impôs “cientificamente” a direção a seguir. Não tenho grande dúvida de que foi aquela imposta linha restritiva – e repressora – que levou à proclamada “degenerescência” do comunismo (inevitavelmente, diria Bakunine!) e finalmente ao seu colapso; isto aplica-se também à linha “mista” que hoje se encontra na China, forçada a admitir uma “abertura espiritual” e a usar palácios imperiais e mosteiros budistas como riqueza turística, já que, neste aspeto, nada criou e muito destruiu. Entretanto, na Coreia do Norte, pseudo-república socialista sob o signo da ideologia juche, o poder autocrático usa e deturpa o “idealismo” na manipulação dos factos e na construção de uma nova forma de culto da personalidade: uma mitologia destinada a perpetuar o regime criado por Kim Il-Sung!

Quanto aos Sindicatos e Partidos do mundo capitalista, a orientação de esquerda sempre se centrou nas “lutas dos trabalhadores” por melhores condições de vida, níveis salariais, horários de trabalho, etc. Ora, por importante que isso tenha sido – e continue a ser – o pensamento e a ação da esquerda não deve restringir-se a tais limites.

É que o capitalismo, em certa época aparentemente condenado à decadência e morte, está, pelo contrário, mais vivo e imperante do que nunca (sobretudo, ao que parece, de um ponto de vista financeiro). E isso não se deve apenas à “queda do comunismo” na URSS e países satélites. Este, aliás, caiu de podre (e, afinal, não o capitalismo!); e ainda bem, porque se tornou rapidamente um tipo de sistema iníquo e hipócrita, em que novas classes dominantes se geraram e passaram a defender os seus interesses e privilégios (na prática, a esquerda volveu-se em direita reacionária). O capitalismo, por outro lado, tem tido tanto êxito, transformando-se, ajustando-se e reafirmando-se, porque corresponde à natureza humana, a um certo poder de sedução aliado à evolução técnico-científica, talvez melhor do que os sistemas anteriores, estratificados, e do que os sistemas comunistas, artificiais e impostos.

Desde sempre, a direita de modo algum se deixou acantonar em qualquer tipo de materialismo. Este encontra-se certamente, no pensamento pragmático de direita, tantas vezes egoísta, na mentalidade restrita de um mau gestor, na voragem do lucro e do cash-flow, na justificação de que “as coisas são como são” ou de que “o mundo é assim”. Mas a direita e o chamado centro-direita abarcam também uma ampla espiritualidade, que não se reduz, longe disso, a verniz e falsas devoções; incluem uma boa parte do “mundo cristão”; acolhem, porque sim ou porque aprenderam a fazê-lo, diversas crenças religiosas e filosofias, como a budista (outrora sujeita a feroz repressão pelas autoridades comunistas, sobretudo na China).

No século XX, infelizmente, a esquerda tornou-se refém de conceções autoritariamente materialistas que, na sua vertente comunista, levaram invariavelmente a ditaduras. Por essa razão, os ideais libertários do pós-guerra desenvolveram-se a Ocidente e, sobretudo a partir dos anos 50, nos EUA, a par de relevantes criações/tendências artísticas, incluindo novos géneros musicais, transmutados de raízes populares. Foi aí que, contra todas as resistências conservadoras, surgiram importantes lutas pela igualdade racial ou de género (com Martin Luther King, por exemplo), pela emancipação feminina e não só. Pelo mundo fora, apesar de tais lutas e movimentos terem claras conotações de esquerda e a ela se deverem, não à direita, foi em sistemas capitalistas – e não comunistas – que se despoletaram e, de algum modo, venceram.

São semelhantes ideais libertários que devem ser, cada vez mais, assumidos pela esquerda – mas não como algo “lateral”. É verdade que a atuação do BE ou do Livre já passam por aí; o que incomoda a direita, que os apelida de partidos de extrema-esquerda. A esquerda, como pensamento organizado, deve deixar de “temer” o genuíno idealismo porque este é fundamental para o ser humano; deve valorizá-lo – não vê-lo invariavelmente como muleta ou placebo – e colocar o materialismo no seu devido lugar: como uma das componentes da vida e da História, nada mais.

O século XX mostrou, a começar pela Física Atómica, que a “certeza científica” (base do pensamento marxista e, por conseguinte, da esquerda mais autossuficiente) é muito mais ilusória do que se pensava à época de Marx. Não é à toa que o budismo, com a sua insistência no aspeto ilusório do nosso conhecimento, se tem disseminado pelo Ocidente. A teoria do Caos veio também demonstrar que a previsibilidade dos eventos é tanto mais falível quanto maior a complexidade destes e o prazo a que se aplica. Isto significa que o determinismo marxista é, hoje, totalmente inadmissível.

Respeito enormemente a Ciência, mas não convém espartilhá-la às nossas limitações. Na minha compreensão do mundo intuo uma realidade múltipla, vejo-o composto de diversos “planos”, interdependentes de modo mais ou menos subtil, mais ou menos evidente. A Matemática, que me maravilha, é uma dessas realidades, com manifestas correlações com o mundo material; não é uma invenção humana (exceto no que toca à sua codificação) porque é demasiado perfeita para isso, jamais nela se encontrou uma contradição, e não há, a meu ver, outro modo de compreender a famosa constatação pitagórica de Galileu: “A Natureza está escrita em caracteres matemáticos”. Que cálculos matemáticos, baseados nas abstratas leis de Newton, levem a colocar satélites em órbita, homens na lua e sondas a circular controladamente pelo espaço – realizações bastante físicas, como também, infelizmente, o é a trajetória de um míssil – constituem exemplos da misteriosa ligação entre “ideal” e “real”. E quanto à famosa relação causa-efeito? “É indiscutível!” – apregoa-se, com a autoridade do bom senso. Porém, segundo determinadas equações relativistas, há dois fluxos temporais no universo, as interações de causa e efeito formam uma teia muito mais vasta e complexa do que poderíamos imaginar (o que, a propósito, pode ajudar a compreender estranhos fenómenos psíquicos, como as premonições ou, ao invés, aquela sensação conhecida como “déjà vu”, que tantos de nós já experimentámos inequivocamente).

Resumindo: de um ponto de vista teórico, torna-se fundamental um ou mais pensadores de esquerda, da envergadura de Marx e Engels, que consigam formular novas bases para a “ação da esquerda” e os ideais que a inspiram. A esquerda precisa, urgentemente, de novos ideais, menos restritivos e mais humanos, que lhe permitam enfrentar a direita com propostas consequentes.

Na verdade, esta nova definição de “esquerda”, a sua procura, já está em curso (por exemplo com o Syriza na Grécia). Mas faz falta, parece-me, uma base teórica englobante, que renove a esquerda e dê maior coerência à sua prática, sendo muito mais do que, simplesmente, “do contra”. Em Portugal, mesmo o PCP, com o BE, tem dado alguns passos no sentido de uma pequena modificação na sua “praxis”, ao aceitar participar – com sucesso – numa ação governativa conduzida pelo PS, na implementação de uma alternativa ao que a direita coligada do PSD/CDS garantia não ter alternativa: o fraturante e depauperante programa levado a cabo por esses diletos “bons alunos” da escola de mestre Schäuble, temperado de “tua culpa” e de “janelas de oportunidade”.

Por fim, o papel do Estado é (sempre foi) da maior importância em qualquer visão de esquerda do mundo, exceto na dos anarquistas; o problema da esquerda é que, na sua concretização em regimes comunistas, sempre redundou numa híper-estrutura fortemente repressiva dos cidadãos que deveria representar e defender. Esse papel tem que ser repensado. De um ponto de vista, dito mais “moderado” – o da doutrina socialista (PS) –, um dos papéis centrais do Estado é o controlo dos excessos a que o “liberalismo” pode levar; a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, independentemente da sua condição social, raça, sexo ou religião; a gestão e o governo do “bem comum”. É um ponto de partida.

A Polícia e o Exército são instrumentos de soberania essenciais em qualquer Estado. Mas, à direita ou à esquerda, quando os governos se tornam corruptos ou incompetentes, que direito têm de usar a polícia ou o exército contra a população que se revolta, a favor da manutenção de um espúrio status quo? Já para não falar da “polícia política”, uma aberração própria das ditaduras!... O Estado deve ser forte, na defesa das condições de vida, da educação, da saúde, segurança social, etc. Mas não deve ser uma fortaleza; porque esta abriga e defende sempre os que se apropriaram do Estado para o exercício da sua vontade: oligarquias, governantes e “satélites” que em torno deles orbitam.

A “filosofia política” não se pode isolar da Filosofia em geral, no que concerne à busca do sentido da vida. Não se trata de encontrar e fornecer uma resposta para todos os seres humanos porquanto, além do que a todos se aplica, o sentido tem de ser procurado por cada um em particular, para a sua própria vida. Trata-se de compreender, antes de mais, que regimes autoritários não se preocupam minimamente com o sentido da vida, a não ser o da sua própria existência e preservação. O êxito do capitalismo deve-se, em boa medida, a propiciar certos sentidos para a vida.

Nenhum sistema socioeconómico alguma vez trará a possibilidade de respostas totais, evidentemente; isso corresponderia a uma situação perfeita, coisa que não existe. Não existirá nunca um sistema perfeito (até porque, nesse caso, seria imutável); mas qualquer sistema pode ser aperfeiçoado, melhorado; e é aqui que uma “filosofia de esquerda”, globalmente falando, se torna importante – ou melhor, imprescindível. Porque a diferença de pontos de vista em relação ao que significa “melhorar” é precisamente o que marca a distinção entre esquerda e direita.


Luís Dias Ferreira

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