PARTE II: CRÍTICA DA ESQUERDA E DA DIREITA
No seu colóquio, já referido, Rui Tavares acrescentou às coordenadas “esquerda” e “direita” duas
outras: “autoritarismo” e “libertarismo”. Segundo ele, tanto à esquerda como à
direita, verificou-se a divisão entre “libertários” e “autoritários”. Remeto o
leitor para a argumentação que apresenta no seu livro “Esquerda e direita: guia
histórico para o século XXI”, e reproduzo a representação esquemática que aí
faz, em quadrantes, ou seja, num quadrado.
Segundo Tavares, nos anos 40, durante a 2ª Guerra Mundial,
George Orwell, um homem de esquerda, disse que na época, mais importante do que
a divisão entre esquerda e direita, era a divisão entre Libertários e
Autoritários. Hoje, o quadrado transformou-se num cubo com a introdução das
variáveis opostas “Cosmopolitas” e “Isolacionistas”.
Convém, a propósito, compreender que esquerda e direita
autoritárias não são sinónimos de ditadura.
A ditadura é o extremo do autoritarismo, assim como a anarquia é o extremo do
libertarismo. Sem dúvida que a doutrina marxista é de estilo “autoritário”,
baseada no seu pretenso cientificismo, que classifica de “utópicas” todas as
doutrinas concorrentes; não necessariamente “ditatorial” apesar de propor a
“ditadura do proletariado” – e isso porque, algo ingenuamente, sustenta que
essa ditadura se dissolveria por si. A materialização do comunismo, contudo, na
sua forma marxista-leninista, estalinista, maoísta, etc., destruiu esse
lirismo, desembocando sempre, e desde cedo, em ditaduras que nunca desvaneceram.
Podemos ser levados a pensar que, nos regimes ditatoriais,
esquerda e direita carecem de sentido ou de existência. Mas a verdade é que, sob
ditadura, o facto de não haver partidos, exceto o que está no poder, não faz
desaparecer o sentimento de esquerda e direita, mas apenas a sua expressão
partidária. Faz, quanto muito, com que o sentimento se auto reprima, a ponto
de, eventualmente, se tornar irreconhecível. Mas não o faz desaparecer. E este
é o maior medo, a maior obsessão dos ditadores e dos seus acólitos. O mesmo Orwell
compreendeu-o muito bem, em “1984”.
Atribui-se frequentemente à direita a defesa da liberdade
individual; e à esquerda a defesa dos interesses e direitos das maiorias, ainda
que com desprezo pelo indivíduo. Embora esta apreciação seja muito redutora, a
trágica evolução da última ideia e a negação da primeira caracterizou o
nazismo, pela transição de um partido socialista, a favor dos trabalhadores,
num partido de extrema-direita obcecado pela grandeza da Alemanha, do povo
alemão, devidamente “depurado”, e da sua mitologia ancestral com diversas
conotações místicas.
Por outro lado, a caracterização da esquerda acima referida
não é estritamente válida no caso do pensamento anarquista, que, de um modo
radical, procura conciliar os interesses e as liberdades do indivíduo com os da
espécie humana, incluindo a sobrevivência. Contudo, o que mais marcou o
percurso da esquerda não foi o anarquismo, foi a sua institucionalização
comunista como “dono do Estado”. Ora, ainda hoje, o discurso do PCP passa frequentemente por insistir
que o problema não são “as pessoas” (que lideram) mas “as políticas” – como se
estas existissem sem aquelas, independentemente delas.
O grande equívoco – logro,
em boa medida – das supostas “ditaduras das massas” (comunistas, fascistas ou
nazis) é que muito rapidamente se transformam em ditaduras de um partido,
depois da cúpula do partido e finalmente de uma pessoa, que é progressivamente
endeusada. “Transformam-se”, digo eu; e não “degeneram”,
de uma raiz tida como pura; é justamente por isso que se trata de um logro.
“Os extremos tocam-se”, costuma dizer-se, por vezes com
alguma hipocrisia. Mas o facto é que nesse ponto, o das ditaduras, os
discursos, a retórica de esquerda ou direita são semelhantes: servem sobretudo para
“legitimar” o regime, a sua imposição e sobrevivência, a repressão das
liberdades em nome de um ideal maior. A dialética dualista afunila cada vez
mais e termina, sempre ou quase sempre, na “caça ao inimigo”, seja ele de
classe, de raça ou de religião, o que forçosamente se ajusta sem maior esforço ao
discurso de base. Não há, talvez, nada de mais repugnante que esta deriva mais
ou menos violenta para a concentração de poder, associada à identificação e
perseguição de determinados bodes expiatórios.
O que isto significa é que a distinção entre ditaduras de
direita ou de esquerda é não só irrelevante como, efetivamente, inexistente.
Fazer de conta que não, pode ser conveniente para quem o faz, mas nada de bom abona
a seu respeito.
Por outro lado, a violência dos regimes opressores e repressivos
bestifica e gera violência e ódio reprimidos na população. Por vezes, estes
sentimentos extravasam “em massa”, subitamente e de modo incontrolável, com a
correspondente natureza destrutiva. Por isso, as ditaduras – como a da Santa
Madre Igreja, em tempos – sempre trataram de preencher o imaginário dos
submetidos com cenas edulcorantes e a dura e estúpida realidade com cerimónias
e jogos brutais; lembremo-nos da reação de júbilo popular nos espetáculos que
constituíam o Circo Romano, na era imperial, os enforcamentos na Idade Média,
os fogos da Inquisição ou as decapitações pela guilhotina ordenadas pelos
jacobinos revolucionários. Ora, mesmo aí, em gentes embrutecidas, o campo das
reações é muito mais complexo do que pode parecer e a indiferenciação íntima
esquerda/direita está longe de ser verdadeira.
O cerne da democracia é que, numa sociedade “sã”, a esquerda
e a direita são tão necessárias uma como a outra: são como os pratos de uma
balança, sendo que os indivíduos de “centro” gostam de se ver como os atilados
e virtuosos fiéis da mesma.
Claro que os sentimentos de “esquerda” e “direita”, como
tantos outros, podem ser manipulados. A propaganda política atua nesse registo,
a começar pelos regimes totalitários surgidos no século XX. Mas cada ser
humano, com os seus medos e inseguranças, também o faz em relação a si próprio
(e a outros), erigindo barreiras, preconceitos e “certezas” que, muitas vezes,
nem uma vida inteira consegue abalar. Mas o que está no fundo lá continua.
Creio que parte da essencial auto inteligência de cada um de nós é chamar a
julgamento todos os meios e instrumentos de auto manipulação e procurar uma
maior harmonização com aquilo que, em cada um, é fundamental. E parece que,
neste capítulo, não andamos muito longe dos ensinamentos e das práticas
budistas.
Luís Dias Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário