Fórum de Reflexão Económica e Social

«Se não interviermos e desistirmos, falhamos»

sexta-feira, maio 19, 2017

Esquerda e Direita no Século XXI - To be or not to be - Reflexões (VI) (parte II/III)


PARTE II: CRÍTICA DA ESQUERDA E DA DIREITA 

No seu colóquio, já referido, Rui Tavares acrescentou às coordenadas “esquerda” e “direita” duas outras: “autoritarismo” e “libertarismo”. Segundo ele, tanto à esquerda como à direita, verificou-se a divisão entre “libertários” e “autoritários”. Remeto o leitor para a argumentação que apresenta no seu livro “Esquerda e direita: guia histórico para o século XXI”, e reproduzo a representação esquemática que aí faz, em quadrantes, ou seja, num quadrado.


Segundo Tavares, nos anos 40, durante a 2ª Guerra Mundial, George Orwell, um homem de esquerda, disse que na época, mais importante do que a divisão entre esquerda e direita, era a divisão entre Libertários e Autoritários. Hoje, o quadrado transformou-se num cubo com a introdução das variáveis opostas “Cosmopolitas” e “Isolacionistas”.

Convém, a propósito, compreender que esquerda e direita autoritárias não são sinónimos de ditadura. A ditadura é o extremo do autoritarismo, assim como a anarquia é o extremo do libertarismo. Sem dúvida que a doutrina marxista é de estilo “autoritário”, baseada no seu pretenso cientificismo, que classifica de “utópicas” todas as doutrinas concorrentes; não necessariamente “ditatorial” apesar de propor a “ditadura do proletariado” – e isso porque, algo ingenuamente, sustenta que essa ditadura se dissolveria por si. A materialização do comunismo, contudo, na sua forma marxista-leninista, estalinista, maoísta, etc., destruiu esse lirismo, desembocando sempre, e desde cedo, em ditaduras que nunca desvaneceram.

Podemos ser levados a pensar que, nos regimes ditatoriais, esquerda e direita carecem de sentido ou de existência. Mas a verdade é que, sob ditadura, o facto de não haver partidos, exceto o que está no poder, não faz desaparecer o sentimento de esquerda e direita, mas apenas a sua expressão partidária. Faz, quanto muito, com que o sentimento se auto reprima, a ponto de, eventualmente, se tornar irreconhecível. Mas não o faz desaparecer. E este é o maior medo, a maior obsessão dos ditadores e dos seus acólitos. O mesmo Orwell compreendeu-o muito bem, em “1984”.

Atribui-se frequentemente à direita a defesa da liberdade individual; e à esquerda a defesa dos interesses e direitos das maiorias, ainda que com desprezo pelo indivíduo. Embora esta apreciação seja muito redutora, a trágica evolução da última ideia e a negação da primeira caracterizou o nazismo, pela transição de um partido socialista, a favor dos trabalhadores, num partido de extrema-direita obcecado pela grandeza da Alemanha, do povo alemão, devidamente “depurado”, e da sua mitologia ancestral com diversas conotações místicas.

Por outro lado, a caracterização da esquerda acima referida não é estritamente válida no caso do pensamento anarquista, que, de um modo radical, procura conciliar os interesses e as liberdades do indivíduo com os da espécie humana, incluindo a sobrevivência. Contudo, o que mais marcou o percurso da esquerda não foi o anarquismo, foi a sua institucionalização comunista como “dono do Estado”. Ora, ainda hoje, o discurso do PCP passa frequentemente por insistir que o problema não são “as pessoas” (que lideram) mas “as políticas” – como se estas existissem sem aquelas, independentemente delas.

O grande equívoco – logro, em boa medida – das supostas “ditaduras das massas” (comunistas, fascistas ou nazis) é que muito rapidamente se transformam em ditaduras de um partido, depois da cúpula do partido e finalmente de uma pessoa, que é progressivamente endeusada. “Transformam-se”, digo eu; e não “degeneram”, de uma raiz tida como pura; é justamente por isso que se trata de um logro.

“Os extremos tocam-se”, costuma dizer-se, por vezes com alguma hipocrisia. Mas o facto é que nesse ponto, o das ditaduras, os discursos, a retórica de esquerda ou direita são semelhantes: servem sobretudo para “legitimar” o regime, a sua imposição e sobrevivência, a repressão das liberdades em nome de um ideal maior. A dialética dualista afunila cada vez mais e termina, sempre ou quase sempre, na “caça ao inimigo”, seja ele de classe, de raça ou de religião, o que forçosamente se ajusta sem maior esforço ao discurso de base. Não há, talvez, nada de mais repugnante que esta deriva mais ou menos violenta para a concentração de poder, associada à identificação e perseguição de determinados bodes expiatórios.

O que isto significa é que a distinção entre ditaduras de direita ou de esquerda é não só irrelevante como, efetivamente, inexistente. Fazer de conta que não, pode ser conveniente para quem o faz, mas nada de bom abona a seu respeito.

Por outro lado, a violência dos regimes opressores e repressivos bestifica e gera violência e ódio reprimidos na população. Por vezes, estes sentimentos extravasam “em massa”, subitamente e de modo incontrolável, com a correspondente natureza destrutiva. Por isso, as ditaduras – como a da Santa Madre Igreja, em tempos – sempre trataram de preencher o imaginário dos submetidos com cenas edulcorantes e a dura e estúpida realidade com cerimónias e jogos brutais; lembremo-nos da reação de júbilo popular nos espetáculos que constituíam o Circo Romano, na era imperial, os enforcamentos na Idade Média, os fogos da Inquisição ou as decapitações pela guilhotina ordenadas pelos jacobinos revolucionários. Ora, mesmo aí, em gentes embrutecidas, o campo das reações é muito mais complexo do que pode parecer e a indiferenciação íntima esquerda/direita está longe de ser verdadeira.

O cerne da democracia é que, numa sociedade “sã”, a esquerda e a direita são tão necessárias uma como a outra: são como os pratos de uma balança, sendo que os indivíduos de “centro” gostam de se ver como os atilados e virtuosos fiéis da mesma.

Claro que os sentimentos de “esquerda” e “direita”, como tantos outros, podem ser manipulados. A propaganda política atua nesse registo, a começar pelos regimes totalitários surgidos no século XX. Mas cada ser humano, com os seus medos e inseguranças, também o faz em relação a si próprio (e a outros), erigindo barreiras, preconceitos e “certezas” que, muitas vezes, nem uma vida inteira consegue abalar. Mas o que está no fundo lá continua. Creio que parte da essencial auto inteligência de cada um de nós é chamar a julgamento todos os meios e instrumentos de auto manipulação e procurar uma maior harmonização com aquilo que, em cada um, é fundamental. E parece que, neste capítulo, não andamos muito longe dos ensinamentos e das práticas budistas.

Luís Dias Ferreira

Sem comentários: