PARTE I: A ETERNA DICOTOMIA ESQUERDA-DIREITA
Esquerda e Direita… faz sentido essa dicotomia no século
XXI?
Claro que faz todo o sentido! De um ponto de vista individual, “Esquerda” ou “Direita”
(cujo conceito e institucionalização nasceu em França pouco antes da Revolução de
1789) corresponde, antes de mais, a um sentimento que vem das entranhas, não
propriamente a uma opção - como acontece com tudo aquilo que é realmente fundamental
– mas a um “ser e estar” que tem tanto de racional como de emocional. O que eu quero
dizer é que o “sentimento” genuíno de se ser de esquerda ou de direita (com os
significados que normalmente se atribuem a estas classificações), a empatia com
a filosofia e o discurso de um ou de outro lado, é intemporal. Já existia antes
da sua institucionalização e continuará a existir, apesar das evoluções de uma
e de outra.
Em todo o caso, desde a sua origem institucional, que
inaugurou formalmente a vida partidária – conforme explicou Rui Tavares, um dos
fundadores do partido de esquerda LIVRE, no colóquio que deu origem a este
livro –, a distinção entre esquerda e direita ficou razoavelmente clara. Em
meados de agosto de 1789, após a abolição dos direitos e privilégios (feudais) de
classe, votou-se se o Rei deveria ter direito de veto ou não. Os votantes
agruparam-se em dois lados, face ao presidente da sessão, o que deu origem à
nomenclatura e à definição do cerne da oposição em causa:
- os que, à direita, defendem o direito a privilégios de classe ou de condição superior, herdados ou conquistados, aceites como um dado natural, seja ele ou não decorrente de disposição divina; e ainda o relacionado e inquestionável direito de propriedade (de terra, de coisas ou mesmo de gente); e os que, à esquerda, combatem estas ideias, que querem a mudança, que não aceitam semelhante estratificação e os privilégios dela derivados e veem antes o reverso da medalha – sobretudo por empatia com uma maior ou menor parte da população remetida para estatutos de miséria e exploração, situação esta que é, também ela, de facto ou potencialmente transmitida.
Poderia pensar-se, ingenuamente ou não, que o posicionamento dos indivíduos à direita
ou à esquerda decorre da sua posição na sociedade, da classe (“dominante” ou “dominada”)
em que se nasceu e/ou se insere. Nada mais falso. Há pessoas de todos os
quadrantes políticos em todas as classes: há aristocratas ou filhos de
milionários genuinamente de esquerda e operários, camponeses ou taxistas com
mentalidade de direita e mesmo de extrema-direita. Esta realidade, que a muitos
custa a perceber, mostra claramente que o dito posicionamento é algo de radicalmente interior, embora certamente temperado
pelas circunstâncias, eventos e azares que formam o chamado “contexto” que
ajuda a moldar o interior ao exterior.
No meu ponto de vista, ninguém escolhe ser de direita ou de
esquerda (ou do centro); ‘simplesmente’ é. E “ser”, aqui, é um processo, não
algo definido para todo o sempre, como a raça ou a cor dos olhos. Não se trata
aqui, evidentemente, de aplicar as Leis de Mendel. Penso que todos nós nascemos
– não sei porquê, pode ter a ver com coisas como a reencarnação ou o karma –, com determinadas disposições e
potencialidades que eventualmente tomam o aspeto de talentos. Ser, potencialmente, de direita ou de esquerda, é algo
desse tipo. Por outro lado, como em tudo o que pertence à esfera do humano (e
não só), ser de esquerda ou de direita não é estar numa gaveta, ter um
pensamento e anseios de características monolíticas. Isto pode ocorrer, mas, na
minha opinião, é sintoma de estupidez ou de hipocrisia. Trata-se de algo que é,
globalmente. Pode ter-se certas “ideias de direita”, sendo de esquerda,
e vice-versa. Isto relaciona-se também com o facto de os próprios conceitos (as
ideias-chave) que definem esquerda e direita não serem nem clara e
indiscutivelmente definidos nem imutáveis no tempo. Relaciona-se ainda com a
circunstância de que cada ser humano não é um monobloco.
O posicionamento individual é baseado em convicções (mais ou menos profundas,
mais ou menos fundamentadas, mais ou menos assumidas) porque não existe uma verdade “superior” que se imponha pelo
seu caráter absoluto. Todos nós, como seres humanos, precisamos dessas
convicções – em todos os domínios: social, científico, cultural, religioso –
porque, sem essa base, à falta de verdades absolutas, nada se pode sustentar.
Esse é o papel assumido, na Geometria Euclidiana, por postulados e axiomas. Foi
o objeto da busca de uma certeza por pensadores tão distintos como Descartes, que
finalmente a corporizou na sua famosa “evidência racional” cogito, ergo sum (penso, logo existo); ou como Kropotkine,
no estabelecimento de um código moral anarquista, essencialmente de uma origem natural da moralidade, do bem e do mal,
extirpada do que classificava como falsidades sobrenaturais e religiosas.
Porém, o grande perigo das convicções de base é
cristalizarem em verdades absolutas para o próprio, que evidentemente, por
serem absolutas, excluem o entendimento com as “verdades” dos outros. É porque
as “verdades” são, na essência, relativas que se justifica a existência de Esquerda
e Direita (e da sua dialética).
Voltamos, assim, à questão de saber se faz sentido a oposição
Esquerda versus Direita no século
XXI? Ainda existe, afinal, esta polarização algo maniqueísta?
Eu, sendo assumidamente de esquerda, acho que sim. Muita
gente – por ironia, tendencialmente de direita – acha que não. E apresenta uma
panóplia de argumentos para mostrar que tal divisão está historicamente
ultrapassada, demodée, out of fashion. Os argumentos têm, em
geral, base institucional. Fala-se de uma pulverização de partidos, de
“sensibilidades”, que já não se conforma com a polarização clássica. Não se
pode, dizem, pensar a política ou a sociedade em termos de “preto e branco”
porque existem inúmeras cambiantes, escalas de cinza. E isso é, evidentemente,
verdadeiro; nenhuma pessoa de bom senso sustentará o contrário.
Encontramo-nos face a algo semelhante à dicotomia
maniqueísta “Bem” e “Mal”. Existem Deus e o Diabo? Existe alguém totalmente bom
ou totalmente mau? Isto é, irredutivelmente bom ou mau? Aqueles que argumentam
contra o Herói virtuoso e sem mácula de histórias e lendas tidas por infantis,
dizem que essa figura é um absurdo, totalmente irrealista; como é um absurdo o
Vilão maléfico. E, contudo, são capazes de aceitar a ideia de Deus e o Diabo como
suprassumos do Bem e do Mal, eternos adversários nas esferas celestiais ou nos
abismos infernais. Houve uma época (recente) em que se procurou “normalizar” tais
figuras, buscando uma via edificante em que qualquer um pode, afinal, ser um
herói ou um vilão, dependendo das circunstâncias.
Ora, se não há dúvida de que circunstâncias extremas podem
trazer à tona facetas de cada ser humano que habitualmente permanecem
“adormecidas”, em camadas profundas do caráter,
não é por isso que este deixa de existir; na verdade, é o caráter que distingue
os seres humanos a nível mais ou menos profundo. Resumindo: todos teremos em
nós algo de bom e algo de mau, facetas essas que podem manifestar-se dependendo
das circunstâncias (a compaixão é uma dessas facetas). Talvez seja assim; mas
seremos, por isso, todos normalmente iguais? Não! É aqui que, por sua vez, a
dicotomia igualdade/diversidade revela a sua existência e, simultaneamente,
relevância.
Agora, se a ideia de “escala de cinza” parece razoável, a
verdade é que não faz grande sentido sem referência(s) de base. Uma escala de
cinza só pode existir em relação a algo,
como os extremos “preto e branco”; ou
certos marcos, como nas gamas
musicais; “escalas”, como “sobe” e “desce”, etc. Como disse atrás, penso que a
polarização “esquerda/direita”, tendo em vista o seu caráter de referencial, ainda existe, sempre
existiu e existirá; e isso porque corresponde a algo na natureza humana – seja a
nível individual ou de coletividade. Ora, o teor individual de “esquerda” e
“direita” é a base para tudo o resto: particularmente a sua institucionalização
parlamentar, com matriz partidária. De facto, as instituições apenas traduzem, como necessidade social de
organização, características da natureza humana.
Contudo, penso que, no essencial, a natureza humana, no
geral e no individual, não é escolha
dos humanos.
Curiosamente, um setor da esquerda (autoritária), que
combate as “injustiças sociais”, pelo direito a isto ou aquilo, tende a
desvalorizar o indivíduo, colocando o foco nas “massas”, nas políticas, nas
instituições – aparentemente como se fossem abstrações, com existência
autónoma. Discordo frontalmente desta visão que, no pior, leva a
desresponsabilizar cada um pelo “destino” que traça para si e que, pior, às
vezes inflige aos outros. Isto é, não podemos dissociar determinadas políticas
dos indivíduos que as implementam – o que é (ou deveria ser) bastante claro na
realidade das ditaduras. Comunismo na URSS sem Lenine ou Estaline? Na China,
sem Mao? Nazismo sem Hitler ou fascismo sem Mussolini, Salazar e outros Pinochets?
Poderemos relevar as patifarias do general Videla nos anos de terror vividos
pelos argentinos? Paralelamente, a ideia de que a “causa” é maior que os
indivíduos é tanto mais perigosa quanto, muitas vezes, hipócrita e interesseira.
A pergunta é equivalente a estas: não eram os Inquisidores pessoas reais? Ou,
no campo da Ciência, o que seria a Física sem Galileu, Newton, Einstein ou
tantos outros, que a construíram com perseverança e, frequentemente,
sacrifício? O que seria a Filosofia sem Platão, Aristóteles, Descartes, Kant ou
Hegel? A Matemática sem Euclides, Pitágoras, Arquimedes?
Que a fase de esquerda/direita como trincheiras tenha sido ultrapassada, espero que sim (embora tenha
dúvidas). Porque, entre outras coisas, aquela prática implica o dogmatismo
acrítico e a obediência cega a uma “nação”
ideológica.
Luís Dias Ferreira
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