O debate sobre este tema contou com a colaboração do historiador Rui Tavares que, na sua qualidade de investigador, publicara recentemente um livro sobre esta questão.
Assim como ele, considero que no século XXI, na conjuntura política que os países do mundo democrático vivem, continuam a ser pertinentes (e úteis) os conceitos “esquerda” e “direita” e faz todo o sentido que se continuem a usar.
1. As designações “esquerda” e “direita” tiveram origem na época da Revolução Francesa, como referiu Rui Tavares no seu livro. Por conseguinte, esses termos surgiram em contexto de monarquia: aqueles que estavam com o Rei sentavam-se à sua direita; os que desejavam uma mudança, tomavam lugar à sua esquerda. Assim nasceram a “esquerda” e a “direita”.
2. Além da França, estes conceitos transitaram para o Reino Unido, usando-se nas “Cortes”, que serviam de órgãos consultivos para o Rei, hoje chamadas “Câmaras” e que mais não são do que o equivalente aos Parlamentos na maioria dos países democráticos.
3. No Reino Unido uns “deputados” sentam-se do lado esquerdo, outros do direito e há um presidente no topo, numa sala de forma retangular. Nos Parlamentos convencionais a disposição é tradicionalmente em hemiciclo (e não em retângulo ou quadrado), por influência do Senado Romano e das assembleias dos Gregos, que na Antiguidade foram os pioneiros da Democracia.
4. Na cultura grega radica o chamado “berço da Democracia”. No século de Péricles, séc. V a.C., foi criada uma estrutura política que previa ter representantes eleitos pelos cidadãos para discutir em assembleia os assuntos mais importantes da Pólis (cidade). Dessa forma, passaram a tomar-se decisões consensuais a partir dos debates entre os cidadãos. Nascia assim o conceito de Democracia (Demos Kratia = poder do povo). Este poder não incluía as mulheres e muito menos os escravos. O “povo”, neste caso, restringia-se apenas aos homens livres.
5. Por influência dos teatros gregos, estruturas em pedra construídas em anfiteatro, aproveitando a inclinação dos terrenos para obter melhores condições acústicas, as assembleias políticas seguiram esse modelo arquitetónico. Ainda hoje os Parlamentos mantêm o mesmo formato (embora já não sejam ao ar livre).
6. Os romanos mantiveram a mesma tradição e formato nos seus Senados, adaptados do Bouleuterion dos gregos (Boulé = conselho de cidadãos).
7. Os conceitos de “esquerda” e “direita” transitaram da monarquia para a República e assim se mantiveram desde o século XVIII até ao século XXI.
8. Nos hemiciclos contemporâneos continuamos a ver os representantes dos partidos políticos sentados consoante as suas ideologias, da esquerda para a direita face ao Presidente da Assembleia, dispondo-se os lugares de bancada em função da posição deste último.
9. Isto é usado tanto em regimes monárquicos (por exemplo em Espanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca, Noruega e Suécia), como nos regimes republicanos (todos os outros na Europa).
10. A própria disposição dos deputados ao Parlamento Europeu é idêntica a esta, tanto na assembleia de Bruxelas como de Estrasburgo. E a própria Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, manteve a disposição em hemiciclo das delegações dos seus países membros.
11. Chegados a este ponto, cabe agora assinalar uma importante condição: só faz sentido falar de “esquerda” e “direita” em regimes democráticos. Em contexto de ditadura, essas designações ficam à partida esvaziadas de qualquer sentido. E são, pelos próprios regimes, colocadas à margem de todo o discurso político pelos seus líderes e afins. E será perigoso se os cidadãos os usarem, pois podem ser suspeitos de conspiração.
12. Empurradas para categorias meramente semânticas, na ditadura do Estado Novo, por exemplo, as designações de “esquerda” e “direita” foram prudentemente banidas da vida política legal, passando a usar-se termos como “ala liberal” para os deputados do centro-esquerda, para os distinguir dos restantes. Ser de “esquerda” significava ser comunista, e logo, um subversivo conspirador contra o Estado.
13. As mesmas designações, noutras ditaduras, podem ser admitidas apenas como propaganda demagógica a fim de mascarar o regime de uma “democracia” que não existe, por exemplo em regimes como o de Cuba ou da China, com governos uni-partidários e eleições manipuladas.
14. Ainda no contexto das ditaduras, é incontornável mencionar a aberração da Coreia do Norte, cujos sinais de falta de democracia aproximam bastante aquele país de um regime de uma terrível monarquia absolutista, com uma enorme alienação das massas, as quais literalmente adoram líderes empossados por via hereditária, endeusados como se fossem messias, inquestionáveis. É difícil acreditar que um regime como este subsista no século XXI.
15. Deste modo, considero que nas ditaduras não se podem aplicar os conceitos de “esquerda” e “direita”, porque tal diferenciação pura e simplesmente não existe. Esse uso não é compatível com regimes de partido único, censura, eleições manipuladas, resultados-fantasma e líderes eleitos ad aeternum (vou propositadamente abster-me de falar aqui do caso de Angola, o qual daria, só por si, outro artigo).
16. Enquanto cidadã europeia, que cresceu em ditadura e vive em regime democrático há mais de quatro décadas, aprendi desde muito cedo as diferenças entre esquerda e direita. E elas são até hoje bastante substantivas na vida política dos países e na minha vida pessoal também.
17. Podemos afirmar o atual governo português como sendo de “esquerda”, assim como o anterior era de “direita” e não tenho dúvida alguma em afirmá-lo. Das diferentes posturas políticas resultam estas designações, as quais correspondem a ideologias que os próprios conhecem e defendem. Os cidadãos, embora por vezes não as identifiquem ou compreendam, sentem na pele as medidas que lhes correspondem.
18. Na conjuntura mundial faz cada vez mais sentido falar de esquerda e direita, tanto nos países da Europa, onde essas designações correspondem a atitudes cada vez mais visíveis, como no resto do mundo, incluindo as superpotências.
19. As ideologias não desapareceram, não caíram com o Muro de Berlim, e não perderam a sua força, antes se vêm extremando. Veja-se o que está por detrás de fenómenos como o Brexit no UK, a eleição de Trump nos EUA ou a ascensão de Le Pen em França (com o risco que isso comporta de mais uma ditadura na Europa, para juntar às da Hungria e da Turquia):
- a) Crenças xenófobas
- b) Racismo
- c) Exclusão social
- d) Fechamento de fronteiras
- e) Proibição de práticas religiosas diferentes da dominante
- f) Restrição de todas as formas de multiculturalismo e interculturalismo
- g) Discriminação das minorias - religiosas, raciais, culturais, étnicas, sexuais ou sequer simplesmente de género (por exemplo defendendo a desigualdade de salários entre homens e mulheres, como vimos recentemente ser proclamado como ideal por um deputado da extrema-direita polaca no Parlamento Europeu)
- h) Elitização da cultura
- i) Restrição dos meios de produção às classes dominantes
- j) Progressiva diminuição dos direitos dos cidadãos
20. Podemos finalizar como começámos, voltando a Rui Tavares e à História: no século XVIII os partidários do Rei, sentados à sua direita, queriam que tudo se mantivesse; eram os ditos conservadores. Os do seu lado esquerdo desejavam alterações no funcionamento do poder, queriam a mudança; eram os ditos progressistas. Conclui-se pois que, grosso modo, esses modelos, importados de França, continuam a existir ainda hoje.
21. No século XXI a esquerda está muito mais aberta à mudança, à introdução das alterações na vida social e política dos cidadãos, enquanto a direita é muito mais resistente às modificações do status quo. Permanece colada ao conservadorismo, às tradições e à permanência dos valores do passado. Portanto esquerda e direita fazem todo o sentido.
Helena Jacques Feliciano
Março de 2017
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