Fórum de Reflexão Económica e Social

«Se não interviermos e desistirmos, falhamos»

quarta-feira, outubro 08, 2008

O sistema financeiro e a tasca do Ti Joaquim

Seque na "net" uma explicação grosseira sobre a situação económica e financeira actual. Essa explicação, entre nós divulgada pelo Octávio Rebelo, traça um paralelismo entre uma tasca na Vila Carrapato e as agências americanas concessoras de créditos imobiliários, entre imóveis e copos de tinto e entre os sofisticados Bancos de Investimento de Wall Street e o Banco do Ti Joaquim. Para melhor enquadramento, segue o dito conto de autoria desconhecida:

O Ti Joaquim tem uma tasca, na Vila Carrapato, e decide que vai vender copos 'fiados' aos seus leais fregueses, uns borracholas, outros desempregados. Porque decide vender a crédito, ele pode aumentar um pouquinho o preço da dose do tintol e da branquinha (a diferença é o sobre preço que os pinguços pagam pelo crédito).
O gerente do banco do Ti Joaquim, um ousado administrador com um MBA muito reconhecido, decide que o livrinho das dívidas da tasca constitui, afinal, um activo negociável, e começa a adiantar dinheiro ao estabelecimento, tendo o 'fiado' dos pinguços como garantia.
Uns seis zécutivos de bancos, mais adiante, lastreiam os tais recebíveis do banco, e transformam-nos em Warrants, CDB, CDO, CCD, UTI, OVNI, SOS ou qualquer outro acrónimo financeiro que nem todos sabem exactamente o que quer dizer. Esses produtos financeiros, alavancam o mercado de capitais e conduzema operações estruturadas de derivativos, na BM&F, cujo lastro inicial todo mundo desconhece (os tais livrinhos das dívidas do Ti Joaquim). Esses derivados vão sendo negociados como se fossem títulos sérios, com fortes garantias reais, nos mercados de 73 países.
Até que alguém descobre que os borracholas de Vila Carrapato não têm dinheiro para pagar as contas, e a tasca do Ti Joaquim vai à falência.


Com algum racional correspondente à situação da dívida hipotecária, diria que a Tasca do Ti Joaquim não foi necessariamente à falência, visto ter "vendido" os créditos ao Banco. Note-se a situação do Ti Joaquim que, não sendo uma instituição financeira, não esteve nunca sujeito à supervisão ou a qualquer tipo de controlo no processo de concessão de crédito, nem esteve sequer motivado a manter a qualidade do crédito. A sua única motivação foi vender o tinto - o crédito era um problema entre o Banco e os borracholas.

Por sua vez, o Banco tinha uma forma de dividir e vender o crédito adquirido, atribuindo-lhe varios níveis de risco por construção de produtos derivados com garantias de terceiros (seguradoras e outras instituições financeiras) e que vendia no mercado.

A tasca do Ti Joaquim sofre agora de risco de falência, porque os borracholas estão falidos e já não conseguem pagar mais "visitas" à tasca e o Banco do Ti Joaquim deixou de comprar créditos ao Ti Joaquim.O conjunto de financeiros que adquiriu os "créditos borracholas" está a par com a incapacidade dos clientes do Ti Joaquim para pagar o que devem, e o único "bem" que existe para ser executado é um conjunto de garrafas vazias dos clientes, que o Ti Joaquim foi guardando nas traseiras da tasca e que não valem o que os borracholas pediram emprestado para as adquirir.

Entretanto apareceu um senhor lá de Lisboa chamado Paulo Sim, que disse ter um plano nacional para salvar o Banco do Ti Joaquim e as outras instituições financeiras envolvidas no processo, a bem da civilização tal como a conhecemos e do sistema económico que a suporta. O problema do plano Paulo Sim é que, apesar de tentar salvar o sistema, não resolve o problema de fundo para evitar situações semelhantes no futuro e ainda por cima ataca profundamente a lógica e bases do sistema. Para além disso, o valor considerado não é suficiente para cobrir todos os créditos borracholas.

O plano do senhor de Lisboa consiste em comprar os créditos borracholas às instituições que os têm, incluindo ao Banco do Ti Joaquim. Isto faz muita gente feliz, em primeiro lugar o Presidente do Banco do Ti Joaquim e as administrações das financeiras que entraram no processo e ainda todos os accionistas destas instituições. Ou seja, andaram todos a arriscar à grande e por isso ganharam à grande - até aqui tudo bem. O problema é que agora que chegou a hora de perder à grande, vem um senhor lá de Lisboa para os salvar, e ainda por cima com o dinheiro de todos, que inclui todos aqueles que sempre foram prudentes e consequentemente nunca tiveram grandes ganhos e aqueles que sempre viveram modestamente e até aqueles que viveram com dificuldades.

A justeza do capitalismo assenta na igualdade ao nível das regras, na equidade ao nível do processo, da igualdade na oportunidade. O socialismo, ao contrário, tende mais para um conceito de justeza no resultado final. Dai que o capitalismo seja compatível com o deixar viver e morrer, é verdade, mas para todos da mesma maneira, com regras claras, com transparência. Um plano que "salva" quem tem que morrer e que, ainda por cima, foi (ir)responsável pela ameaça ao sistema, com consequências potencialmente devastadoras a nível global, não pode ser bom, ou justo.

Então como se resolve o problema? Para não salvar o prevaricador vamos deixar o sistema afundar? A situação é complexa e a solução não será simples, mas deverá ser rápida. Os temas são: deixar o sistema funcionar e salvar o sistema. Parece um paradoxo, mas não tem que ser. Se considerarmos que deixar o sistema funcionar significa deixar afundar o prevaricador e salvar o sistema significa garantir a continuidade das instituições financeiras relevantes.

Durante o último "crash" de 2000, não se puseram em causa as falências das tecnológicas, as perdas dos investidores e de postos de trabalho. Porque deverá ser diferente agora? Por outro lado, a principal função do sistema financeiro não deverá ser prejudicada, principalmente a de ponte entre o aforrador e o investidor. Com uma quebra importante na capacidade de concessão de crédito dos Bancos, teremos uma inevitável transmissão do problema à economia real, nomeadamente às empresas que baseiam na obtenção de crédito não só o investimento, mas a própria actividade corrente. Uma quebra importante na capacidade de concessão de crédito pode, no curto prazo, afundar a maioria das empresas que poderíamos considerar financeiramente saudáveis, bem geridas, grandes ou pequenas. Teríamos boas empresas a morrer, simplesmente por operarem em sectores com necessidades de financiamento de fundo de maneio. Em simultâneo, teríamos empresas a sobreviver, não necessariamente bem geridas, simplesmente por operarem em sectores geradores de fundos de maneio superavitários. Mesmo nestas últimas, o investimento estaria comprometido enquanto a crise financeira durasse. Em qualquer caso, o resultado seria uma profunda e prolongada recessão que provocaria um retrocesso incalculável dos níveis de riqueza e um inevitável reposicionamento de poder económico, em que os países mais expostos, nomeadamente os Estados Unidos, a Europa e até mercados emergentes com certo grau de dependência da economia americana, como a China, ficariam prejudicados.

Para manter a moralidade do sistema, os investidores (accionistas) das instituições em risco devem perder o seu investimento e os "management" dessas instituições perder o emprego. Neste âmbito, haverá níveis de responsabilidade e consciência diferentes, mas isso é "business as usual". Por outro lado, as funções das instituições financeiras de depósitos (e algumas de aforro mais relevantes) e crédito e prestadoras de garantias (incluindo seguradoras) deverão ser salvas através da nacionalização dos activos e passivos. Pode ser realizado pela entrada do Estado no capital (directamente ou através de fundos especiais) com o objectivo de garantir as aplicações mais líquidas e fazer o "turnaround" das instituições. Dependendo da situação de cada instituição, o Estado poderá entrar por via de um aumento de capital, caso os capitais próprios ainda mantenham algum valor, ou simplesmente por aquisição da instituição por um valor simbólico e posterior injecção de capital. Entretanto, operar um reformulação da regulação para evitar situações semelhantes no futuro. Depois de assegurado o funcionamento normal do sistema, os Estados poderão alienar as instituições "nacionalizadas", a preços de mercado, o que não invalida a hipótese de os Estados poderem vir a efectuar ganhos ou mais valias face ao "investimento", ficando assim salvaguardado o património do Estado no sentido mais estrito.

2 comentários:

Mário de Jesus disse...

Excelente reflexão e trabalho João. Muito bem fundamentado. Vou apenas complementar as minhas ideias anteriores desenvolvendo um pouco a saga da tasca do Ti Joaquim.

Otavio Rebelo disse...

Prezado João,

Quero agradecer-te pela lucidez com que abordas esta crise, colocando alguma ou bastante ênfase na questão da moralização. Para ganhar, foi só para uns, para perder, já todos são chamados, o que é sem dúvida injusto. Entretanto O primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, afirmou hoje que os banqueiros que assumem riscos irresponsáveis devem ser "punidos" e assegurou que os altos salários que estes recebiam "acabaram". Todos reconhecem a importância do sistema financeiro. Muitos constatam agora que a supervisão deste mesmo sistema financeiro falhou. Também não compreendo porque demoramos tanto tempo a dar ouvidos às vozes sensatas. O teu artigo demonstra muito conhecimento, muita sensatez e começa a dar resposta ao meu apelo ( Precisam-se mentes brilhantes ). Agora também é preciso que saibamos dar ouvidos ao que as mentes brilhantes nos transmitem, pois a nossa margem para erros parece ter-se esfumado. Um abraço, Otavio