Examinemos em primeiro lugar a referência à nossa idade histórica como país; em seguida verificaremos alguns exemplos (sem preocupação cronológica), que atestam vitórias significativas e a resiliência necessária e fundamental para a manutenção da identidade de Portugal.
- Portugal foi fundado em 1128, após a vitória de D. Afonso Henriques contra sua mãe, D. Teresa de Leão, na batalha de S. Mamede, embora essa fundação só tenha sido ratificada em 1143, pelo Tratado de Zamora, após o reconhecimento do país pela Santa Sé. Portugal é até hoje o país com as fronteiras mais antigas da Europa. Se observarmos a sua evolução, elas mantêm-se quase idênticas às que se estabeleceram mediante as conquistas de territórios antes povoados por povos ditos “mouros”, oriundos do norte de África.
- Portugal venceu os cercos de Lisboa, do Porto e de Elvas e derrotou as tentativas de invasão de Castela, nas batalhas de Aljubarrota (1385) e várias outras; muito mais tarde, impediu as Invasões Francesas através de diversas batalhas, mormente nas Linhas de Torres.
- Ao longo da sua história, Portugal apenas perdeu a sua independência uma vez: a seguir à crise de poder decorrente da tomada de posse de D. Sebastião e à sua morte prematura na batalha suicida de Alcácer Quibir, em 1580, o maior desastre militar da história de Portugal. No mesmo ano morreu Luiz de Camões.
- Existiam em Portugal sistemáticos parentescos entre reis portugueses e espanhóis, fruto dos casamentos arranjados de príncipes portugueses com princesas de Castela, Aragão e Leão. Bastou que D. Sebastião, efebo de orientação sexual indefinida, tão imaturo como obstinado, não tenha deixado descendentes à data da sua morte, para que o poder caísse fatalmente nas mãos de Castela. Este poderoso reino vizinho nunca se havia curado do mal-estar causado pelo “grito de independência” do resiliente Afonso Henriques e, como tal, não perdeu tempo a instalar representantes da corte espanhola em Lisboa.
- Portugal, ocupado e reprimido, perdeu a sua soberania durante 60 anos, mas nunca perdeu a sua identidade, os seus hábitos, a sua cultura e a sua língua. Um grupo de fidalgos, na altura a elite intelectual de vanguarda política, conseguiu organizar-se na clandestinidade e conspirar para preparar um golpe de Estado que restaurou a independência. O grupo, de quarenta conjurados, conseguiu penetrar no Palácio Real, no terreiro do Paço, defenestrar o Secretário de Estado, Miguel de Vasconcelos, e prender a sua putativa amante, a Duquesa de Mântua. Esta detinha o título de ‘vice-rei’ da coroa espanhola em Portugal, mas era ao Secretário ‘traidor’ que os portugueses tinham ido ganhando realmente um ódio de morte; de norte a sul esperava-se apenas um momento mais frágil da coroa espanhola para colocar em prática o golpe que havia de restituir a independência ao país. No dia 1 de Dezembro de 1640 deitava-se literalmente pela janela o poder de Castela e acabando com o reinado dos Filipes de Espanha em Portugal.
- Não será alheio a este feito heroico a autoestima elevada que os portugueses tinham conquistado após o período áureo dos Descobrimentos. No início dos anos de 1500 arrastava-se uma feroz perseguição aos judeus, obrigando-os a que se convertessem ao Cristianismo. Por via de um decreto de D. Manuel I, ou abandonavam o país ou se convertiam, sob pena de morte e confisco dos bens. Muitos fugiram, mas muitos outros foram massacrados. Queimados vivos no Rossio mais de 20 mil, são hoje recordados num memorial perto da Igreja de S. Domingos. Além de seca e da peste, Lisboa sofreu incêndios e saques em massa; barcos piratas chegavam aqui carregados de bandidos que se aproveitaram da perseguição aos judeus para roubar as suas muitas riquezas. Grassava por volta de 1506 uma situação quase caótica. Porém, nos alvores do século XVI, a cidade havia-se tornado num dos portos mais importantes da Europa, considerada a capital de comércio mais florescente do velho continente. O comércio era de tal modo próspero no século XVI, que chegavam mercadores de muitos países procurando desde tecidos sofisticados (como sedas e brocados), até especiarias, mobiliário, joias, chá, sal e toda a sorte de artigos raros e caros. Aqui se ditava a moda e se produziam das mais interessantes trocas de import-export da época.
- A par do comércio florescente, surge sempre um florescimento nas Artes e na Cultura; Portugal não foi exceção. Basta ver a quantidade de soberbas pinturas e construções monumentais da época, para perceber, por um lado, que existia riqueza, e por outro, mestria, ligada a um importante conhecimento nos campos da arquitetura e engenharia. Só para citar alguns exemplos, internacionalmente reconhecidos como importante património, o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém são símbolos da cultura portuguesa dos Descobrimentos (construídos entre 1501 e 1563).
- Poder-se-á objetar que tanto o ‘bom gosto’ como as vanguardas políticas são forjadas dentro e pelas elites… Sem dúvida! Mas já na Antiga Grécia, berço não só da Democracia como de toda a Cultura Ocidental, assim era. Também em Roma, os arquitetos, pintores, escultores, engenheiros, filósofos, pedagogos, dramaturgos, poetas e músicos, não provinham das classes populares nem dos escravos, mas sim das elites instruídas. Contudo, a questão das assimetrias de classe não cabe neste artigo; talvez noutro, cujo título poderia ser “Educação, Educação e Educação”. Mas prossigamos nos exemplos do que de bom se fez.
- Portugal foi dos primeiros países a instituir as Misericórdias, para prestar assistência aos pobres e mendigos, fornecendo abrigo, alimento e assistência na doença às pessoas carenciadas. A obra deveu-se no início à Rainha D. Leonor, em Lisboa, e a D. Manuel I no resto do país.
- D. Dinis fora o fundador da Universidade de Coimbra, a mais antiga do país e das primeiras do mundo, em 1290. Foi considerada uma referência até aos finais do século XIX, nas áreas da Teologia, Direito e Medicina. É desde 2013 Património Mundial da UNESCO.
- D. Dinis foi o primeiro governante a ter uma visão estratégica no campo da Ecologia, tendo decidido mandar plantar o Pinhal de Leiria para evitar a erosão do litoral leste de Portugal, ainda hoje uma zona de fragilidade ambiental por via do avanço do mar e dos ventos fortes.
- D. Dinis, para além de um enorme apreço pela cultura e instrução, manifestou enorme talento para a poesia, tendo composto belos poemas conhecidos no cancioneiro português como Cantigas de Amor e Cantigas de Amigo.
- D. Duarte e D. Henrique, filhos de D. João I e D. Filipa de Lencastre, foram eminentes Infantes, o primeiro pelo seu talento literário e equestre e o segundo pelas capacidades de estratégia náutica, a quem se atribui um forte contributo para as epopeias marítimas portuguesas, por estudos e conhecimentos do mar.
- No campo da expansão marítima, os portugueses foram pioneiros em muitos feitos, que, na época e com embarcações relativamente frágeis e poucos instrumentos de auxílio à navegação, foram considerados nada menos que heroicos: por exemplo, dobrar os terríveis Cabos Bojador e da Boa Esperança, descobrir o caminho marítimo para a Índia, chegar à Tailândia, à China e ao Japão e achar o Brasil. Gil Eanes, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama ou Pedro Álvares Cabral são nomes incontornáveis do que se pode chamar, com orgulho, “grandes portugueses”.
- Portugal aboliu a pena de morte em 1867, no reinado de D. Maria II. Dois anos depois em 1869, por decreto do Marquês de Pombal, era abolida também a escravatura. Em ambos os casos Portugal foi dos primeiros países a tomar tais medidas, o que revela já na época, algum sentido civilizacional de caráter humanista.
- À semelhança da França, Portugal derrubou a monarquia e instaurou um regime republicano, com nova Constituição e abertura do direito a eleições livres e periódicas. No dia 5 de outubro de 1910 adotava-se a ‘bandeira’ dos valores da Revolução Francesa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.
- O primeiro governo republicano decretou o ensino básico (escola primária) para todos, como uma das suas prioridades, dado que a população portuguesa registava, em 1910, 80% de indivíduos analfabetos, o que era absolutamente urgente alterar.
- O Portugal da 1ª República conheceu figuras como Carolina Beatriz Ângelo, Ana de Castro Osório e outras personalidades, à altura das Sufragistas Inglesas, que lutaram tenazmente pela igualdade das mulheres, nomeadamente no direito ao voto e no direito ao acesso ao Ensino Superior Universitário, em paridade com os colegas homens.
- Durante a segunda metade do século XX, os portugueses, apesar de 48 anos de repressão e cultura do medo, apesar do aparente conformismo e mediocridade que o sistema lhes infundiu, demonstraram uma tenacidade insuspeita. Ao conseguir derrubar uma ditadura fascista, numa revolução sem sangue, que instaurou a democracia por meios pacíficos, demonstrou uma atitude cívica sem precedentes. A democracia, construída sem violência, serviu de inspiração ou exemplo para diversas outras ‘transições’ pacíficas por essa Europa fora, a começar pela vizinha Espanha. Até o Brasil sofreu a influência positiva deste acontecimento.
- Portugal conseguiu restabelecer a paz e a diplomacia com povos que outrora oprimira nas ‘províncias’ de África, pelo colonialismo nacionalista e imperialista de Oliveira Salazar. Hoje, e apesar de todas as guerras sangrentas da sua história, mantém o diálogo possível e cumpre todos os acordos de cooperação assinados.
- Last but not least, Portugal foi dos primeiros países europeus a abrir-se à atual crise dos refugiados, tendo também oferecido ajuda humanitária em variadíssimas outras situações de crise no mundo. Recentemente acabou por obter o lugar de maior prestígio entre todas as organizações mundiais, com António Guterres como Secretário-Geral da ONU, o que não é ‘coisa pouca’…
Poderíamos continuar a citar muitos mais momentos bons, para demonstrar que os quase 900 anos de história de Portugal não foram feitos só de falhanços, derrotas e tristezas. Se assim fosse, certamente que já nem sequer existiríamos enquanto país.
Cabe ao leitor ajuizar, após esta breve reflexão crítica, qual o grau de autoestima que os portugueses devem (ou não), manter e cultivar após quase 900 anos de existência do país. Será admissível pensar que não temos senão falhado ao longo de toda a história?
Perante estes exemplos, de momentos em que Portugal foi vitorioso, não parece haver fundamento para a manutenção do pessimismo nem da cultura do fatalismo; não há, de facto, razões para pensarmos que temos andado sistematicamente a falhar em 900 anos.
Muito há por fazer, mas com espírito positivo, já que desistir, isso sim, seria falhar.
Helena Jacques Feliciano
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