Realizou-se no passado dia 27 de Maio em Lisboa mais
um jantar/debate do FRES, durante o qual se abordou e discutiu com maior
profundidade o tema dos contratos de associação do Estado português com as
escolas do ensino privado e cooperativo. Esta discussão já decorria há várias
semanas dentro do Grupo mas foi exposta de forma presencial neste encontro.
Ainda que as posições dos membros presentes tenham divergido em determinados
pontos do tema, como seria aliás de esperar e louvar dada a dimensão do grupo
presente, deste debate ressaltaram algumas ideias chave que se resumem neste
texto.
É
consensual que existem vantagens e virtudes nos contratos de associação e que a
Lei vigente sobre este tema é satisfatória e adequada ao bom funcionamento
deste instrumento do sistema educativo português. Quer se seja mais ou menos
adepto ou defensor da atual Constituição, é consensual a ideia de que cabe ao
Estado assegurar a criação e manutenção de um sistema de ensino público que
cubra as necessidades de toda a população. Porém, tal como está definido no
artigo 73.º e seguintes da mesma, em nenhum deles é dito que o Estado está
impedido de contratar com escolas do ensino privado ou cooperativo, se tiver
como objetivo reforçar essa rede através de acordos com estes estabelecimentos
de ensino. Aliás, como está claramente definido no artigo 74.º, «Todos têm
direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de
acesso e êxito escolar». Ora desta forma, em nenhuma das alíneas do referido artigo
transparece qualquer norma que pareça impedir o recurso a contratos de
associação com os privados. Tal significa que essa é matéria para a Lei
ordinária e que depende das políticas e programas de cada Governo.
Ainda que a Lei vigente nos
pareça adequada e satisfatória o problema prende-se, como sempre, com o seu
cumprimento. Na prática, há que acautelar o interesse dos alunos, dos pais, dos
professores, do sistema educativo e, em última instância, do próprio Estado e
contrariar o que parecem ser, por vezes, formas deturpadas e encapotadas de uso
abusivo da Lei através do favorecimento de clientelismos e interesses privados
instalados dentro desse sistema educativo. Por isso se coloca muitas vezes a
interrogação se os contratos de associação não deveriam – modo condicional –
ser apenas firmados quando não exista oferta da rede pública de ensino nas
condições definidas na própria Lei. A resposta é claramente sim. Uma coisa é
certa: o Estado não deve nunca ser permeável a tais clientelismos e interesses
instalados, como foi o caso de alguns exemplos tornados públicos.
2.
Existirão redundâncias?
Do acima exposto sobressai que
importa fazer um
estudo sobre a existência de redundância de escolas públicas, bem como de
escolas privadas no sistema de ensino público. Importa saber se estamos a otimizar os recursos
disponíveis na lógica da relação entre custo e benefício, de modo a poder
concluir-se se é necessário finalizar com este ou aquele contrato ou encerrar
algumas escolas privadas ou públicas, ou, alternativamente, manter tudo como
está. Na prática, importa efetuar um estudo global mas, ao mesmo tempo, caso a
caso.
Se
observarmos que, numa determinada região do país, existe oferta de rede pública
suficiente para a satisfação das necessidades do sistema educativo, então não
se justifica firmar com privados contratos de associação. A tão propalada liberdade
de escolha funciona para ambos os lados, neste caso para o lado público. Cada
um de nós, como pais ou encarregados de educação, temos direito à liberdade de
escolha de poder ter os nossos filhos no sistema de ensino público. Se em dada
região as escolas do ensino privado ou cooperativo lá tiverem chegado primeiro,
garantindo ao sistema educativo uma oferta suficiente e adequada à região, então
não se justifica que o Estado tenha (ou pretenda) desperdiçar recursos na rede
pública de ensino, quando pode bem vir a estabelecer com aqueles
estabelecimentos contratos de associação exigindo-lhes, por sua vez, que cumpram
os requisitos de qualidade e façam sobrepor o direito ao ensino e à igualdade
de oportunidades – conforme consagrado na Constituição.
Continua a haver dúvidas e
muita discussão quanto à qualidade de umas e outras escolas; porém, a realidade
não é a preto e branco. Há escolas públicas e privadas com boa e má qualidade
de ensino. O que sabemos é que, descontando alguns aspetos pontuais
relacionados com o problema da demografia (redução do nº de alunos a frequentar
o ensino básico e secundário), uma escola privada com uma oferta de ensino de
qualidade, ao melhor nível e com reconhecimento na sua região, não depende de
dinheiros públicos para sobreviver. As boas escolas privadas têm os pais em
fila de espera para inscrever os seus filhos. Por isso é polémica e mal
compreendida esta discussão posta em primeiro plano após a tomada de posição do
atual governo quanto à renúncia em prolongar alguns dos atuais contratos de
associação com escolas privadas. Pelo que sabemos, haverá apenas 3% de escolas
com contratos de associação, quando a rede privada representa já 20% da oferta
de ensino. E é polémica porque estamos a falar de apenas 72 de entre as 2400
escolas do país e das quase 500 escolas privadas. Levantam-se questões sobre as
razões desta discordância e das manifestações contra e a favor da continuidade
dos contratos.
Independentemente da avaliação que cada um queira
fazer deste problema, importa ter presente que o Estado é uma pessoa de bem (é
suposto ser) e
cumpridora dos compromissos assumidos. Desta forma, há necessariamente que ter
em conta o cuidado quanto ao momento da renúncia destes contratos, já que
podemos assistir a situações diversas, pois uma coisa é renunciar um contrato
com o prazo de um ano que termina a curto prazo; já outra é renunciar, sem aviso
prévio (se for o caso), contratos com prazos de três anos, deixando as escolas
em situações difíceis pois podem ter incorrido em custos de contratação de
novos docentes. Aqui, deve o Estado avaliar cada caso de rescisão, levando em
conta se estamos perante o caso de uma decisão unilateral e antes de cumprido o
seu prazo de vigência.
É certo que o país vive um grave problema demográfico
que afeta já a população estudantil, uma vez que esta tem vindo a ser reduzida
ao longo dos anos, o que se irá refletir na rentabilização das estruturas
existentes, no número de professores e no emprego. Porém, no momento atual, a
redução da natalidade não é igual em todos os locais do país. A desertificação
observada no interior que tem levado ao encerramento de muitas escolas não
impede o aumento da rede escolar pública em zonas geográficas que o
justifiquem. No entanto, é importante olhar para a demografia quando se tenta
fazer um balanço ou analisar a relação entre a oferta pública e privada. Daqui
resulta a necessidade de ajustar a oferta de ensino e a otimização dos recursos
à evolução demográfica e à realidade demográfica de cada região.
Neste pressuposto, caberá ao Estado tomar a decisão de
investir prioritariamente nas escolas com melhor desempenho e condições físicas
e logísticas quando for necessário aumentar a oferta pública de ensino ou, se
necessário for, encerrar aquelas com pior desempenho. Ao mesmo tempo, esta
gestão tem de levar em conta a oferta local de ensino privado, “jogando” com
estes ativos disponíveis de forma a otimizar recursos, como já dito atrás. Mas
também aqui o Estado tem de ter mão firme e não tolerar situações de tráfico de
influências e de jogos de interesses particulares. Mais uma vez, esta discussão
não pode nem deve ser ideológica mas sim política.
4.
Cuidados a ter com o excesso de
centralidade do sistema educativo
Existem entre nós correntes de opinião que defendem
que o sistema educativo é demasiado expositivo e que apenas visa a propagação de
um conteúdo pedagógico, em alguns casos demasiado generalista, sistema esse
criado, defendido e implementado por um conjunto de burocratas sentados nos
gabinetes do Ministério da Educação, cuja qualidade é fortemente aferida
através da avaliação periódica em exames nacionais. Muitos de nós nos
questionamos se este é o melhor sistema e se não estaremos a cair num excesso
de centralidade, deixando pouca ou nenhuma liberdade às escolas para
implementarem o seu próprio projeto educativo. É certo que não podemos cair nos
extremos. Deve existir um conjunto de diretrizes e de regras definidas
centralmente, como os programas base e as regras de avaliação, deixando porém
às escolas a liberdade e a imaginação quanto a diferentes métodos pedagógicos e
opções extracurriculares distintas, de acordo com a realidade socioeconómica do
seu universo estudantil.
5.
Será
a educação um negócio ou um papel social do Estado?
A
Constituição é a Magna Carta de todas as leis do país; está por isso acima de
todas as leis. No entanto, não deve ser visto como um documento intocável, nem
o tem sido. A prova disso é que desde 1976 foi revista por sete vezes. E é
importante que as entidades soberanas a acompanhem permanentemente e a avaliem
sem dogmas nem posicionamentos ideológicos. Mas, ainda que mereça uma discussão
sobre determinados temas delicados quanto ao seu ajustamento ao mundo
atual, designadamente às novas realidades políticas, económicas e sociais, não
deve ser abastardada. Não pode levianamente ser usada para justificar alterações por
quaisquer interesses momentâneos de natureza político-partidária ou
corporativista.
A Constituição portuguesa dedica um capítulo
inteiro à educação e cultura, de onde se destaca aqui os artigos 73º, 74º
e 78º. Daqui podemos retirar que a educação é uma responsabilidade do Estado, a
ele cabe garantir que todos tenham acesso à educação e cultura e à igualdade de
oportunidades. A ele cabe garantir que todos estão em pé de igualdade de oportunidades
e a ele cabe garantir a sua gratuidade, em especial a quem não reúne as
condições financeiras para tal.
Por tudo isto, nesta
dimensão, a educação e a cultura dos cidadãos de um país livre e democrático
não é nem pode ser, meramente, um negócio. Tal como num âmbito mais geral, a
saúde não pode ser, meramente, um negócio. Antes de mais e acima de tudo, é em primeiro lugar uma obrigação e
responsabilidade do Estado de uma sociedade livre e democrática.
Mas vejamos o paradoxo: a
saúde e a educação podem ser um negócio! E são-no! Mas numa outra
dimensão, não na dimensão social a que nos referimos atrás.
E é um negócio no sentido
literal da palavra porque existe uma oferta privada e diversificada de clinicas
e hospitais, tal como existe uma oferta privada e diversificada de colégios,
universidades, academias de formação, de apoio ao estudo e aos exames nacionais.
São realidades diferentes, que não podem contudo pôr em causa a outra dimensão
da educação e da saúde. Sendo um negócio para os seus investidores não é um
negócio para os cidadãos em geral, vistos como os membros de uma sociedade
livre e democrática, aos quais deve ser assegurado o direito à saúde e à
educação.
Prova disso é o facto, de nos últimos anos em
Portugal, a oferta de ensino público ter caído 47% enquanto a oferta de ensino
privado cresceu 10%. Daí que tenha de haver cuidado quando se fala da
concorrência do privado vs público e do custo benefício do ensino. A oferta da educação
e da saúde não se destina a dar lucro ao Estado. É um papel social e uma
responsabilidade do Estado.
6.
Como atingir a melhoria e eficiência do sistema educativo?
Um dos aspetos que não
apresenta grandes dúvidas é a relação entre os custos de um aluno no ensino
público e privado. Tais custos estão apurados e nem diferem assim tanto. O que
verdadeiramente importa é a otimização dos recursos, a rendibilidade e
racionalidade dos investimentos no sistema educativo. Nenhuma escola privada
pode pretender viver de favores do Estado, à custa do erário público e
beneficiar de uma espécie de “renda vitalícia”. A preocupação do regulador deve
ser premiar os melhores estabelecimentos de ensino e penalizar os piores,
racionalizando e otimizando o sistema. Isto tanto pode implicar fechar escolas públicas que não
são mais do que ativos onerosos, redundantes, piores e mais caras (no futuro),
como cancelar contratos de associação com escolas privadas que procuram viver e
subsistir à custa do erário público ou de jogos de interesses. Ou porque simplesmente
não garantem a qualidade necessária. Tal não é um ataque nem à escola pública
nem privada. É um jogo de equidades.
Não é de modo nenhum aceitável que haja sobre
capacidade nos serviços do Estado e recursos por otimizar pelo que, onde houver
turmas por preencher nas escolas da rede pública numa determinada região, estas
deverão ser preenchidas ou, em alternativa, encerradas. Nestes como em outros
casos, as escolas privadas (ou os seus proprietários) fizeram as suas escolhas
e, como tal, têm que gerir o seu negócio de forma livre mas independente dos
dinheiros públicos.
O Estado tem a obrigação de apostar na qualidade da
escola pública, para que a igualdade de oportunidades seja uma realidade
concreta, não desperdiçar recursos e não ceder a lobbies privados essa oportunidade, até porque investiu nas
estruturas físicas e formou professores. Quando tal não acontece e apenas
quando os requisitos na Lei o permitem, aí sim, a discussão não pode nem deve
ser ideológica mas sim política – a implementação da melhor política de
educação – devendo nestes casos considerar-se a concessão do serviço público de
educação à gestão privada, através da concessão de ativos e serviços públicos mas
mantendo uma ação regulatória omnipresente e eficaz.
Contrariamente, onde houver sub-capacidade no público
e oferta suficiente no privado, verificadas certas condições de equilíbrio
custo-benefício, não faz também sentido investir recursos em mais escolas públicas.
E a discussão não pode ser
ideológica mas política porque o ensino deve ser projetado e oferecido tendo em
conta as necessidades do país, não só nos tempos atuais mas tendo em conta as
exigências do conhecimento dos próximos 10 ou 15 anos. Porque os nossos filhos ou
netos irão desempenhar profissões e tarefas que hoje não existem, e em geografias
que não imaginamos. Posto isto, o sistema educativo, público ou privado, deve
orientar-se para desenvolvimento de novas competências, os designados “soft
Skills”, para os quais nem sempre está preparado.
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