A. FRES Vinhos
Os visitantes deste blogue questionarão se o FRES mudou de agulha e transformou-se de grupo de reflexão económica e social em irmandade dos amigos de Baco. Não é o caso, se bem que o grupo integre confrades dotados de conhecimentos vínicos ao nível dalguns fazedores de opinião profissionais e consagrados. Para além disso, vários fresianos têm olfatos e palatos tão apurados e exigentes que conseguem deixar a anos-luz, no momento do casamento entre os vinhos e a comida, determinados chefes de mesa de restaurantes de nomeada.
FRES Vinhos constitui
tão-só uma designação agregadora de posts
associados ao vinho; no fundo é um elemento de dinamização dum produto
tradicional da economia nacional. Nasce agora e, por falta de contributos, pode
morrer dentro em breve. Apenas importa a intenção de atribuir ao setor vinícola
a consideração que merece. Poderíamos desagregar o FRES por diversas áreas. FRES
Vinhos é uma expressão comparável a FRES Impostos, área implícita composta
pelos posts alusivos à fiscalidade. Quanto
à classificação de assuntos, a etiqueta que talvez eu deva enaltecer refere-se
a FRES Democracia, que junta uma série de contributos e reflexões acerca da
democracia nacional, tendo culminado com a honra prestada ao 40.º aniversário do
25 de Abril.
Voltemos ao
FRES Vinhos. Em primeiro lugar gostaria de declarar que não faço parte dos
subconjuntos de fresianos acima identificados, sejam os experientes conhecedores
das andanças do vinho ou os simples consumidores refinados. Saliente-se que, por
outro lado, não tenho qualquer interesse económico nos setores da vinha e do
vinho. Antes de avançar cumpre ainda informar que a grainha que esteve na
génese do post em questão foi o preço
do vinho no mercado internacional, como o título indiciará.
B. Da
produção à exportação
B.1. Comércio
internacional
O néctar
milenar, expandido a partir do Antigo Egito, apadrinhado por Dionísio (e depois
por Baco) e atualmente apreciado pela generalidade dos povos – exceto
os muçulmanos, por motivos religiosos –, representava em 2012 cerca de
0,2% do comércio internacional. Ampliando as objetivas, conclui-se que 90% do
comércio estava concentrado somente em 24 territórios (que, no seu conjunto, correspondiam
a aproximadamente 36% da população e 72% do PIB mundiais). Considerou-se 2012
por ser o último ano em que estão disponíveis dados agregados definitivos respeitantes
a todas as rubricas utilizadas nos dois gráficos do presente post.
O gráfico 1 expõe
essas duas dúzias de territórios, dos quais nove são exportadores líquidos de
vinho – os do lado esquerdo do eixo horizontal. Entre os 15 principais
importadores líquidos, destacam-se os EUA e a Alemanha pelo facto de serem,
respetivamente, o sexto e o sétimo maiores exportadores mundiais (atrás de
França, Itália, Espanha, Austrália e Chile). Os 11 países exportadores atrás indicados – 9 + 2 – detinham
quase 96% do valor (93% do volume) das exportações mundiais, razão pela qual
convém que sobre eles recaia uma atenção algo refinada, o que acontecerá nas próximas duas subsecções.
Gráfico 1
Portugal era
o 10.º no ranking, só à frente da
África do Sul e da Nova Zelândia, consoante se trate de valor ou de volume das
exportações – o valor sul-africano e o volume neozelandês exportados representavam
92% e 52% dos correspondentes valor e volume das exportações portuguesas. O
montante anual das importações de vinho nacionais equivalia a 12% das
exportações efetuadas em igual período.
A França, a
Itália e a Espanha detinham 56% do volume – 15%, 21% e 20%, pela mesma
ordem – e 60% do valor das exportações mundiais – cabendo cerca
de metade ao primeiro país e aproximadamente um terço ao segundo. Uns exíguos
8% do montante global das exportações estavam reservados, no outro extremo, à
Alemanha, a Portugal e ao Reino Unido. Os seis principais países exportadores
emergentes nas últimas décadas – África do Sul, Argentina, Austrália,
Chile, EUA e Nova Zelândia (doravante Novo Mundo) – possuíam 25% da
quota de mercado do valor da exportação mundial, cada um deles com um peso semelhante
ou superior ao do nosso País.
O Novo
Mundo do vinho praticamente não tinha expressão até aos anos 80. Recorde-se que
ele não brotou nem fluiu duma forma natural; antes pelo contrário. O fórceps
foi a astuta iniciativa montada pelos norte-americanos, que permitiu demonstrar
à razão que, por as crenças e os preconceitos distorcerem a concorrência, os
mercados são muitas vezes imperfeitos e irracionais. Refiro-me essencialmente
ao acontecimento fraturante que ficou gravado na História como o Julgamento de
Paris, ocorrido em 1976. Voltaremos a este assunto em posterior oportunidade,
por ser deveras importante para o cabal esclarecimento dalgumas lendas acerca da
qualidade e do preço do vinho.
Na segunda
metade da década de 80 a referida meia dúzia de novos países, ainda hoje
apodada de interessantes, não ocupava mais do que 3% do volume das exportações
mundiais de vinho. No final do milénio representava cerca de 15%, passando para
quase o dobro (28%) apenas uma década depois. Tal acréscimo da quota de mercado – em
termos quantitativos – foi necessariamente obtido sobretudo à custa
dos tradicionais exportadores europeus de referência, em especial a França e a
Itália. Apesar de os maiores países europeus verem as suas quotas percentuais cortadas,
conheceram – com destaque para a Espanha e a
Itália – aumentos significativos no volume de produção, fruto do crescimento
sustentado do consumo mundial. Note-se por exemplo que, não obstante a partir
de 2007 a contração da quantidade consumida ter rondado os 6%, nos primeiros
sete anos do milénio o consumo reforçara-se à volta de 13%.
B.2. Análise
por país exportador
Do gráfico 2 consta
um conjunto de informação alusiva aos 11 principais países exportadores. Apresentam-se
da esquerda para a direita, por ordem decrescente do preço médio das
exportações, variável central do presente post,
conforme mencionado. Antes de abordar esta variável, interprete-se a restante
informação do gráfico, que permite enquadrar objetivamente o tema em apreço.
Gráfico 2
Pode observar-se que a relação entre os volumes de vinho exportado e produzido era
substancialmente maior na Nova Zelândia (91%), o dobro da média ponderada do
peso calculado para o universo dos países identificados – 54% em
Portugal. O gráfico mostra igualmente a decomposição daquela relação,
evidenciando os rácios entre a quantidade de vinho exportado e consumido em
cada país, por um lado, e entre o vinho consumido e produzido, por outro.
Em cinco países
o volume exportado superava o consumo interno – de 109% na África do
Sul a 277% no Chile, passando pela Austrália, Nova Zelândia e Espanha. O rácio
médio ponderado nos 11 países era de 65% – 73% em Portugal. Nos mesmos
cinco países registava-se o menor peso entre o consumo e a produção. O peso era
naturalmente maior nos dois países importadores líquidos já explicitados: os
EUA e a Alemanha. O peso médio ponderado era de 70% – 74% em
Portugal.
Atenda-se a
que para o efeito se considerou a quantidade total de vinho (de qualquer tipo,
nomeadamente tranquilo, gaseificado e fortificado), engarrafado em recipientes
com capacidade até dois litros, bem como o vinho comercializado a granel, embora
este último conceito abarque uma diversidade de situações. De facto, de acordo
com os critérios internacionais, o vinho a granel vai desde o vinho envasilhado
em recipientes com capacidade superior a dois litros vendido aos consumidores
finais até ao exportado em contentores (apropriados à preservação das
características organoléticas do vinho) e engarrafado somente nos mercados de
destino.
B.3. Quantidade,
qualidade e preço
Entre os 11
países, os vinhos franceses eram indiscutivelmente os mais bem vendidos: 6,83
dólares por litro. Acima da média (ponderada, de 3,26 dólares) encontravam-se ainda
a Nova Zelândia e os EUA – respetivamente 5,93 e 3,45. Portugal (com
2,64 dólares) situava-se 19% abaixo da média. Os entendidos nas áreas da vinha
e do vinho costumam defender a premissa de que normalmente a quantidade e a
qualidade da produção evoluem em sentidos opostos. Assim sendo, por aplicação da premissa, são forçados a explicar o preço do vinho em função da quantidade produzida e a preconizar que esse preço é um indicador da qualidade do bem transacionado.
Desmonta-se facilmente
a forma intransigente como inúmeras vezes a premissa é divulgada. Para além de
não haver qualquer relação inversa entre o preço do vinho exportado e o volume
das exportações, verificava-se pelo contrário uma relação positiva forte (de
0,78), o que viola uma lei fundamental do funcionamento dos mercados em
ambiente de forte concorrência, segundo a qual, para uma determinada quantidade
procurada, quanto maior for a quantidade oferecida, maior será a pressão para
os preços descerem.
Retorquirão
os mais céticos que o preço não depende da quantidade (ou do volume) mas sim da
qualidade. À partida admite-se este argumento apenas se os céticos não foram os
mesmos que apoiam a premissa (já identificada) sobre a relação inversa entre a
quantidade e a qualidade. Porém o argumento torna-se bastante questionável,
porquanto para assegurar a sua validade seria preciso comprovar que é a qualidade
exalada pelo vinho francês – note-se que a França possuía uma quota
de mercado do valor da exportação mundial de vinho de 31% (15% em volume) – que
justifica a divergência abissal de preço face à maioria dos demais concorrentes
de quaisquer plagas, do Velho e do Novo Mundo. A matéria será desenvolvida em
tempo oportuno.
Outra
perspetiva que merece ser analisada prende-se com a produtividade das vinhas. Com
efeito, relacionar o preço e a quantidade do vinho exportado pode não ser
suficiente para equacionar as diferenças de preços, pois a quantidade é per se uma variável absoluta. Existe assim
a necessidade de articular o volume de exportação com a área utilizada (no
pressuposto normal que a vinha usada para o vinho de exportação tem uma
produtividade idêntica à da vinha usada para o vinho consumido no mercado
interno). É por isso que no gráfico 2 consta a produtividade das vinhas em cada
um dos países.
A relação estatística
entre o preço médio do vinho exportado e a produtividade média das vinhas é
nula. No domínio da produtividade o nosso País destacava-se humildemente face
aos restantes, ou seja, pela negativa, com apenas 2,67 quilolitros de vinho por
hectare de vinha, i.e., 46% abaixo da
produtividade média (4,93). Conjugando essas duas variáveis, por exemplo
através da semissoma do preço do vinho exportado e da produtividade das vinhas
(mesmo que o resultado não tenha significado económico), denota-se claramente
que os países mais bem colocados eram a França, a Alemanha e a Nova
Zelândia – o primeiro e o terceiro são exportadores líquidos antípodas
tanto em termos geográficos como em relação à tradição vinícola. Enquanto a
França ocupava a alcandorada posição, o carro-vassoura seguia o trilho da
Espanha, que estava pouco atrás do seu vizinho ibérico.
Numa
distância demasiado curta à dimensão planetária mas enorme à escala das
condições climatéricas para a floração das videiras e a maturação das uvas – distância
à volta de dois mil quilómetros, entre as regiões vinícolas do soalheiro sul de
Portugal e do sombrio norte da França –, assiste-se aos extremos incrustados
de geração em geração, de mito em mito: entre Portugal e França, cada um tem o que
a (des)ditosa fama dita. Trata-se duma evidência preocupante que merece uma
atenção acrescida, até porque ainda não surgiu a tão aguardada retoma do consumo
mundial, bastante atingido pela crise económica avolumada a partir de 2008 e,
como se o atraso da retoma não bastasse, o preço real do vinho encontra-se ao
nível do do início do milénio.
C. Principais
mitos
No próximo post tentarei avançar com algumas explicações
para o arrepiante e misterioso hiato entre o preço médio do vinho francês e o
preço praticado pelos outros países. Para entrar no âmago do preço irei
apresentar, sob a forma do desenraizamento de mitos, algumas hipóteses simples
em relação ao dogma frequentemente instituído de que le vin c’est français e o resto é pouco mais do que paisagem. A tentativa
poderá soar a ousadia da minha parte, admitindo portanto que choverão reações severas
vindas dos especialistas dos vários quadrantes.
Certamente que
alguns entusiásticos membros das ordens regulares e demais críticos
doutrinários ficarão abespinhados comigo por considerem que a desmistificação
que procuro encetar não passa duma blasfema manifestação de opinião. Uns acusar-me-ão
de insolência ou arrogância; outros somente de desconhecimento ou ingenuidade.
Assim seja, embora deva anunciar de antemão que partirei para o exercício com a
mente aberta a todas as conclusões.
Se no atual post as evidências resultaram do
tratamento dos dados publicados por vários organismos internacionais, com
destaque para a Organização Internacional da Vinha e do Vinho, no próximo as
desmistificações – ou blasfémias, como entenderem – basear-se-ão
essencialmente na viagem silenciosa, ascética e enclausurada ao mundo vínico, para
não ser influenciado pela subjetividade inebriante doutras pessoas em relação
ao espírito que a bebida transmite.
Procurarei desmontar oito mitos que, a meu
ver, têm influenciado determinantemente o preço dos vinhos e distorcem o
mercado internacional – e por conseguinte a concorrência –, a
saber:
1) A alma do
vinho é o seu terroir.
2) O corpo do
vinho consiste nas castas.
3) A produção
massiva reflete-se negativamente na qualidade e no preço do vinho.
4) Os vinhos
de alta qualidade têm marcantes características singulares.
5) Os vinhos
ambiciosos melhoram com a idade.
6) Os vinhos
superiores dispensam a boca.
7) A Cabernet
Sauvignon é de Bordéus e o resto não passa de imitação.
8) A França contém as regiões
vinícolas mais distintas do Mundo.
Para quem
sente como dogmas as oito afirmações, poderá a si próprio fazer o desafio de
refletir sobre as mesmas – ainda que a tarefa dificilmente se
vislumbre, a qual será tanto mais improvável quanto mais enfeudadas à corrente
dominante estiverem as opiniões. O que para uns são teorias incontestáveis ou convicções
escudadas, para mim não passa de mitos. Tentarei ser claro e objetivo na atrevida
tarefa de refutar as mencionadas afirmações míticas – que em rigor são
apenas uma amostra –, permitindo concluir que os fundamentalismos abundam
e vão para além do clubismo, da religião ou da política. Alea jacta est.
1 comentário:
Post de grande interesse para e digno de qualquer jornal do Mundo!
Espero ansiosamente pelo próximo post sobre o tema que é afinal relevante em muitos pontos do planeta!
Melhores Cumprimentos,
Nuno Maia
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