A história foi-me contada em segunda mão, pela minha mulher, e assim a partilho, num relato que, sem o ter vivenciado, me custou a ouvir e me custa a escrever. Nas vésperas de Natal, a consorte – ou sem ela – foi ao talho buscar o cabrito que encomendara havia dias. No estabelecimento, dois clientes, ela, numa ponta do balcão, e uma velhota, de uns 80 anos, na outra. Apesar de falar em surdina, era percetível que a senhora se queria abastecer, mas já tinha uma elevada conta em dívida – dizia-se fiado, na minha infância – e insistia em falar com o patrão. O empregado dizia que o dono estava ao telefone e não podia atender. E a senhora insistia...
A senhora estava vestida «pobremente, mas com dignidade». Porventura aquela pobreza envergonhada, típica das grandes cidades. A minha mulher, ao que me disse visivelmente incomodada pelo prolongar da situação, discretamente dá indicação ao empregado para abastecer a senhora. A senhora escolhe com critério vários pequenos pedaços de carne – devia viver sozinha – «para um cozido», terá dito. Contas feitas: 16€. Acordo com o talhante, acertado depois de a senhora sair: se a senhora vier(viesse) a pagar o dinheiro será(ia) devolvido à minha mulher. Obviamente que o não será.
Quando a história me foi relatada, fiel a uma certa sovinice, ainda comentei que 16€ «é dinheiro» e que ela poderia ter encontrado uma alternativa solidária mas de menor custo. Recebo como comentário: «aquele dinheiro foi uma percentagem x – ínfima – do meu prémio de final do ano». Coisas privadas, já se vê! E desse modo, colocado em perspetiva, fui devidamente posto no lugar. Fim de conversa.
Outro pormenor: sobre a idade da senhora não me foi dito que tinha cerca de 80 anos, mas sim: «da idade da tua mãe!». Ajuda também a traçar a bissetriz para quem nos está próximo e não gostaríamos de ver em iguais circunstâncias. Acresce o facto de ser Natal e acresce ainda o facto de se ir fazer uma compra de montante várias vezes superior e ver ao lado o nosso semelhante sem condições para fazer uma compra de menor custo.
Não conheço a senhora, nem a sua história de vida e se aquele montante terá sido bem ou mal gasto. Mas foi comida, a quem precisava, numa época naturalmente solidária, mesmo para os não crentes, pelo que tem de ter sido necessariamente bem gasto.
Tudo isto para dizer que não deixei de pensar que teremos cada vez mais de ter gestos destes. Não resolvem nada, claro que não! Mas mitigam. E sobretudo não podemos pedir mais ao coletivo, simplesmente porque o coletivo – o Estado – não tem dinheiro e não pode prover a tudo. A era do Estado universal, para todos, e a que a todos provê, extinguiu-se. Teremos também, e cada vez mais, de individualmente, ou em grupo, complementar aquilo que coletivamente já não pode ser feito. É um apelo à ética individual…
Haverá quem ache – os sempre lestos a criticar o Banco Alimentar, a Cáritas e organizações afins – que isto é caridade (individual ou em grupos de gente de boa-vontade) e que o que deve imperar é a assistência (pública). Fiéis a essa vulgata ideológica, e pouco sensíveis à realidade em ato, aquela concreta, que está ao nosso lado, quando se deparam com iguais situações, dá-me a ideia que se refugiam no conforto da cartilha, numa triste e autística autojustificação. É geralmente gente umbiguista que se não se consegue colocar em perspetiva em relação ao seu próximo numa situação real e passada, ali mesmo, ao seu lado, menos ainda consegue entender o mundo como uma república universal, na linha de Kant, em que cada Estado se deveria comportar como se todos os outros formassem uma espécie de Estado Mundial, uma grande civitas humana. Vivem na abstração das grandes ideias, revelando uma incapacidade gritante de confrontar a teoria com a prática. Foi dessa massa gente que saíram alguns dos mais sangrentos regimes que o mundo conheceu. É gente perigosa, que acha que a virtude está no seu extremo – aquele que defendem – e não no meio.
Aprenderão com o tempo e espero que nem eles, nem os seus, venham a sentir na pele tais situações.
Um Bom Ano!
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