Fórum de Reflexão Económica e Social

«Se não interviermos e desistirmos, falhamos»

terça-feira, outubro 01, 2013

Europa-América...


O homem precisa absolutamente de estar só para aspirar a conhecer a essência do seu semelhante. Blasfémia, ou nem tanto… Na verdade, quis o acaso (ou algo mais), que este pensamento me ocorresse em Toronto e não em Lisboa. Estava a jantar sozinho num hotel, com a incomparável vantagem de manter todos os sentidos atentos ao mais ínfimo pormenor. Raros momentos esses em que o prazer de estar só se sobrepõe à melhor das companhias. Só, comigo mesmo, em vez de tentar destilar a solidão, como se na mesma tivesse que encerrar alguma espécie de maldição, coloquei-me no papel do solitário observador. Uma posição confortável, qual esponja sequiosa, aspirando ao conhecimento.

À minha frente, e separados por duas mesas, um homem um pouco para lá da meia-idade e uma jovem mulher (na casa dos trinta, para mim são teenagers) falavam, descomplexada e apaixonadamente, sobre a vida, os filhos e os respetivos maridos e mulheres, não existindo na conversa qualquer alusão de cariz sexual. Assim se mantiveram, em desconfortável distância, o tempo suficiente para conhecerem acerca de cada um mais do que cada um provavelmente aspiraria a saber acerca de si próprio (falar com um desconhecido é semelhante ao anonimato das sessões de psicanálise).

À minha direita, ou seja, à esquerda do improvável casal de conversadores, uma família (fulminantemente atingida pelo mesmo mal do lince da Serra da Malcata), composta por uma grata e improvável combinação de netos, filhos e avós, escolhia os pratos. O pai, à direita do filho, deficiente, cumulava o rebento com toda a espécie de mimos, como se tivesse gerado o ser perfeito, idolatrando-o como os servos aos deuses. Parecia um bicho-da-seda tecendo diligentemente o casulo com que protegeria o frágil rebento. Era amor em estado puro, galgando deliciosos degraus da afetividade. Um amor que, de tão genuíno e mostrado à saciedade, se poderia considerar patético para corações empedernidos.

Mais à minha direita, ou seja, à esquerda das mesas dos dois conversadores, separados por desconfortável distância, e ainda mais à esquerda do progenitor apaixonado pela cria imperfeita, um grupo de velhas (todo o género de pessoas com mais de trinta anos acima da minha idade…), dedicava-se solidariamente à odisseia de despejar mais pints numa noite do que o somatório de toda a aritmética alcoólica que percorreu as veias das minhas duas avós ao longo da sua longa existência.

Dei comigo a pensar como a América é de facto diferente, na sua quase infantil ingenuidade, na perseguição patética do american dream; na forma como nos abordam nos elevadores vendendo a mais incrível miríade de coisas, perseguindo a mais escassa oportunidade de negócio; na maneira empolgada como falam de Billy the Kid ou Wyatt Earp, com uma veneração superior à que dedicamos a Winston Churchill ou a Leonardo da Vinci; na forma com que percorrem os corredores dos seus edifícios com menos de cem anos, proferindo orgulhosas palestras, como se nesse espaço tivessem ocorrido acontecimentos mais opulentos e fatídicos que os que alguma vez tiveram lugar no Coliseu de Roma.

Na ingenuidade desses homens americanos, contraditoriamente saídos na sua esmagadora maioria de sangue irlandês, holandês, italiano e inglês, subsistiu, ou mais do que isso germinou, uma vontade férrea e uma crença enorme no sucesso, que nós europeus, na nossa snob e inútil superioridade, ficámos derramando como gárgulas, como se tivéssemos sido lancetados do orgulho de séculos de grandiosa história, declinando nos americanos o empreendedorismo e a ousadia e nos asiáticos as fábricas que antes nos livrariam do trabalho e hoje nos privam da subsistência.

A nossa descrença (e consequente decadência), patente na reeleição de líderes apetrechados de óculos-de-Alcanena, vem condicionando a nossa forma de pensar, agir e manter uma atitude construtiva perante a adversidade. A nossa Europa deslocalizada, descaracterizada e cada vez mais desidratada dos fundamentos que ao longo de séculos lhe transmitiram identidade, vê-se dirigida por governantes que apenas se preocupam com as questões domésticas, como donas de casa laboriosas. Uma Europa perdida, apeada dos mais ínfimos resquícios de solidariedade.

Felizmente a viagem deu-me o pretexto necessário para não ter de me deslocar às urnas, o que me poupou a alguma ansiedade. Afastado dos boletins de voto nas eleições autárquicas, fiquei a confortável distância numa melancólica meditação. Sonhando com o dia em que os imparáveis e voláteis gentlemen da política portuguesa deixariam de se mover pelos municípios nacionais com tamanha volatilidade e insensatez, quedando-se dependurados de um qualquer varandim da Gomes Freire a observar um país livre da sua estafada presença no nosso quotidiano.

Dei comigo a pensar (deep thought) como a ingenuidade infantil de uns (americanos), pode ofuscar a sabedoria de outros (europeus).
Apeteceu isolar-me como o Zaratustra de Nietzsche, na sua caverna da montanha, recuperando as forças para novos combates. Como diria o filósofo, numa expressão que bem se poderia aplicar à Europa: «quem vos tirar as cores, as flores e as plumas, ficará apenas com algo com que espantar os pássaros».

God bless America! God Save Europe!

Foto - Luís Bento

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