Utilizo diariamente os transportes públicos, designadamente o Metropolitano e a Carris. Há já uns anos que viajo normalmente tendo por companhia um MP3, abstraindo-me um pouco das conversas circundantes, perdendo - tenho consciência disso - muito conhecimento do meu semelhante. Os transportes são, como se sabe, um curioso microcosmos antropológico. Geralmente até só ligo o telemóvel já nas imediações do meu local de trabalho, procurando criar logo pela manhã um pequeno momento Zen, que me prepare para o ritmo do dia. Ocasionalmente isso não acontece.
Numa dessas ocasiões, num Metropolitano bastante composto de gente, e onde de forma forçada se encurtaram os espaços entre os passageiros, surpreendi uma conversa entre uma mulher e um homem. Ela, uma criatura de meia-idade, nem bonita nem feia, de atitude demasiadamente assertiva, e até mesmo um pouco desagradável nos modos, o que não a tornava simpática. Ele, um indivíduo mais jovem, barba de dois dias, fato e gravata, ar um pouco negligé, tímido mas do género insonso, diria que uma espécie de yuppie de gama baixa. Como íamos quase lado a lado, a conversa deles impôs-se-me. Ela falava mais alto, pelo que era impossível não ouvir, ele mais baixo. Dá-me ideia que ela teria tido funções numa instituição europeia, ele devia ser advogado.
Numa parte da conversa – a viagem deve ter demorado menos de 10 minutos – ela recordava os deputados europeus e outro pessoal das instituições comunitárias que, há 15 ou 20 anos, via nas salas VIP dos aeroportos, a utilizar o telemóvel de um modo exibicionista para fazer chamadas particulares sobre trivialidades, deixando-se ouvir pelos demais, referindo-se àqueles que «à nossa conta» e com «o nosso dinheiro» torravam os saldos. Dou de barato que aqueles de quem ela falava tinham telemóvel pago e dou de barato ainda o facto de também ela exibir alarvemente as suas opiniões àquela parte da carruagem, nisso não se distinguindo dos primeiros. O que me chocou foi a forma boçal como ela se referia ao «nosso dinheiro». Coisa que, aliás, vejo repetida até à exaustão hoje em dia por todo e qualquer motivo e por tudo quanto é gente, e que assenta no pressuposto de que o dinheiro do Estado é de todos os cidadãos e o dinheiro das empresas e das pessoas é delas. Não contesto tanto o fundamento último do argumento, mas sobretudo a forma arrogante com que o mesmo é brandido. Não creio, aliás, que nenhum cliente de uma empresa diga que o dinheiro que aquela empresa gera é a ele que se deve e na verdade os lucros das empresas provêm do dinheiro de quem lhes compra os bens ou os serviços que elas produzem. Nem vejo nenhum pequeno acionista, ou até grandes, dizerem com essa jactância, a propósito da empresa de que detêm ações, que é «nossa» ou falar desse modo do «nosso dinheiro». Há mesmo quem, a propósito do Estado, diga «o meu dinheiro», o que então me parece profundamente ridículo, pela insignificância da contribuição, e mesmo os que dizem «o nosso dinheiro» apelam, com esse plural majestático, a que todos se irmanem dessa demagógica afirmação.
O jovem concordava, anuindo sem reservas, ou até mesmo corroborando com veemência, ajudando a carregar ainda mais no tom daquela carta. Até aqui nada de especial, uma conversa como tantas outras, num tom igual a tantos outros. Acontece que pouco depois, o jovem refere-se a uma prática profissional em uso na empresa onde trabalhava e que se resume a isto: o apoio telefónico aos clientes era cobrado em períodos mínimos de 15 minutos, pelo que uma chamada de 5 minutos, ou menos, era cobrada como sendo de 15, uma chamada de 16 era cobrada como sendo de 30, e por aí em diante. Ao referir isto ele esboçou um sorriso algo comprometido e ela embatucou, devolvendo-lhe um sorriso alvar. Tudo isto não mereceu qualquer comentário ou crítica daqueles dois. E eu, para dentro, não deixei de analisar que sobre uma realidade que tinha em comum o telefone, mas em que a segunda era profundamente mais danosa, a diferença de postura entre o que se exige ao Estado e o que se exige às empresas. Da conversa entre eles resultou o espancamento verbal dos deputados ou funcionários europeus por fazerem umas chamadas particulares e de trivialidades com o telemóvel que lhes estava atribuído, não merecendo qualquer comentário a prática de uma empresa que, no limite, pode cobrar até 14 vezes mais pelo apoio telefónico que presta…
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