Há quem faça o caminho da esquerda para a direita, mais comum, há quem faça o caminho da direita para a esquerda, há quem faça o caminho dentro de cada uma das correntes, de posições mais radicais para posições mais moderadas, e há quem faça o percurso inverso. Pessoalmente fiz um caminho da ideologia para o que considero certo ou errado, justo ou injusto, ou melhor, mais certo do que errado, mais justo do que injusto.
No que respeita às privatizações comecei por ser contra as de alguns setores estratégicos – não carece explicar aqui as razões – e depois passei a ser mais favorável. E comecei a ser mais favorável não por razões ideológicas, mas por razões práticas. A mudança começou no dia em que essas empresas perderam a sua identidade e se passaram a assemelhar a empresas privadas, copiando modelos e práticas. Concretizando com um exemplo, quando os CTT transformaram as estações de correios em bazares chineses e os empregados – deverei dizer colaboradores – me oferecem lotaria sempre que lá vou, não reconheço ali a dignidade de um serviço do Estado. Se nada distingue o público do privado, então que se venda, pelo menos não dá prejuízo, que um dia terá de ser pago.
Esta minha evolução começou assim. Perante cada caso, analisava já mais o comportamento da empresa em causa do que os benefícios mais tangíveis ou mais intangíveis para o país, porque é com as práticas quotidianas que eu lido e não com os benefícios macroeconómicos que no imediato não sinto. Houve uma empresa – a TAP – em que me mantinha mais ou menos neutral. Apesar de a empresa dar cronicamente prejuízo, de ter periódicas injeções de capital, e de isso um dia ter de ser pago, apesar das greves de pilotos e afins sempre por mais dinheiro numa empresa deficitária, mantinha-me neutral. Agradava-me ver os aviões brancos com a bandeira portuguesa e nomes de navegadores e outras figuras da nossa história, ao lado de outras companhias aéreas de bandeira, agradava-me o profissionalismo – por vezes snobe – e o aprumo das tripulações, e mais do que tudo confiava na segurança da sua quase mítica manutenção. Cheguei mesmo – para destinos mais inóspitos – a adiar a viagem ou pagar mais para voar na TAP. No fundo confiava na empresa e via nela um motivo de orgulho nacional: eis como temos, num sector nobre, uma empresa tão boa ou melhor do que as outras. A minha opinião tem vindo a evoluir nos últimos anos e foi alterada para «venda-se já» há umas semanas» depois de uma viagem de regresso de Londres.
Nessa viagem paguei bilhete TAP, mas voei numa empresa chamada White. Isso não me foi dito, e como era de noite, e entrei por uma manga, nem dei conta do aspeto do avião. Mas lá dentro percebi que não era TAP.
A conferir as diferenças:
- A tripulação envergava fardas White;
- A tripulação não tinha o aprumo TAP;
- A tripulação falava entre si, contava piadas e tinha conversas laterais, mesmo com algum calão, em tom suficientemente audível para os passageiros ouvirem;
- Um jovem assistente de bordo apresentava uma camisa branca que parecia ter saído diretamente da máquina de lavar a 60º e sem ver ferro para o tronco do dito;
- Outro assistente, ao pedido de um passageiro para trocar o sumo de manga, respondeu que os sumos eram todos iguais; foi o passageiro que viajava ao lado que trocou o sumo com o primeiro; o assistente desculpou-se por não ter reparado, isto quando estava já nas últimas filas de distribuição da refeição;
- Não existia nos bancos a habitual revista da TAP, nem sequer televisão;
- O passageiro à minha esquerda abandonou o lugar depois da refeição para se ir sentar na executiva ao lado de alguém que deduzi ser o chefe dele; deixou o apoio de mesa aberto com o boião da fruta em cima, e o «assistente da camisa amarrotada» perguntou-me se ele já tinha bebido o sumo para poder recolher o boião, ao que lhe respondi não fazer ideia; em padrão TAP isto seria impensável;
- O assistente amarrotado andou a fazer a recolha das embalagens das refeições em – pasme-se – um grande saco de lixo transparente: isto seria mais do que impensável no padrão TAP.
Concluindo, paguei bilhete TAP mas voei com a White, sem ser avisado, o que me parece, no mínimo, enganoso, e viajei com um padrão inferior ao da TAP, com uma tripulação de padrão inferior ao da TAP. A ser assim no que é visível, admito que possa não ser muito diferente no que não é visível. Por mim, o meu «veredito-cidadão» está feito: que se venda aquilo e quanto mais depressa melhor.
Foto - Paulo J. S. Barata
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