Enquadramento
No quadro abaixo encontram‑se
sintetizados os aspetos enquadradores dos sorteios da Fatura da Sorte
(«FS», daqui em diante) que se iniciaram no pretérito 17 de abril.
Objetivos
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Estratégias
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Destinatários
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Medidas
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Principal
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Específicos
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Reduzir a economia paralela e a fraude fiscal
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Alargar a base tributável das empresas de setores
específicos (1)
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Incentivar a solicitação de fatura
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Prestadores de serviços
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Benefício fiscal em sede de IRS (2)
Sorteios da FS
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Combater a faturação paralela e a emissão de faturas
falsas
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Comparar os valores declarados nas faturas (3)
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Vendedores de bens e prestadores de serviços
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Sorteios da FS
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Aumentar os rendimentos declarados pelas pessoas
singulares
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Comparar o consumo com o rendimento (4)
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Contribuintes particulares
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(1) Trata‑se dos seguintes setores de atividade (doravante «setores‑alvo»): manutenção e reparação de veículos automóveis e de motociclos; alojamento – incluindo o aluguer temporário de espaços concorrentes com o alojamento turístico oficial –, restauração e similares; e salões de cabeleireiro e institutos de beleza.
(2) À coleta de IRS é feita uma dedução parcial – 15% em 2014 (5% em 2013) – da verba correspondente ao IVA suportado com as prestações de serviços referentes aos setores‑alvo, até ao limite de 250€.
(3) As Finanças pretendem detetar divergências nos valores registados, procedendo à comparação entre os montantes das faturas com NIF pedidas pelos contribuintes particulares e as quantias declaradas pelas empresas vendedoras de bens e prestadoras de serviços.
(4) Dado haver uma forte relação entre essas duas variáveis económicas, é possível identificar indícios de fraude fiscal perscrutando o montante e o perfil de consumo dos contribuintes, e comparando‑os com o respetivo rendimento tributável. Na eventualidade de consumo desequilibrado, presume‑se que existe uma omissão na declaração de rendimentos, a menos que se comprove a origem destes.
Virtude da FS e críticas injustificadas
Os problemas da economia paralela e da fraude fiscal são
deveras complexos, em termos tanto da sua origem como da correspondente
resolução. Estima‑se que em Portugal eles têm uma dimensão
ligeiramente superior à média dos países pertencentes à OCDE. Há uma tendência
mundial para que a magnitude dos mesmos seja inversa ao grau de desenvolvimento
dos países. Isto explicar‑se‑á porventura por os países mais desenvolvidos disporem de
sistemas financeiros mais profundos e inovadores, que permitem a efetiva e
ampla desmonetização das transações comerciais, possibilitando que os
pagamentos se façam eletronicamente e permitindo por isso um controlo acrescido
por parte das autoridades tributárias.
Por mais críticas que se apontem, nunca serão demais as
respostas encontradas para concretizar o objetivo de decréscimo da dimensão da
informalidade económica. Assim sendo, a introdução dum benefício em sede de IRS
e a realização dos sorteios da FS – última coluna do quadro – devem ser
entendidas como medidas genericamente pertinentes (não obstante os puristas
oporem‑se a todas as soluções que promovam o
hábito de cumprir a obrigação legal e cívica de os consumidores finais
solicitarem faturas no momento da aquisição de bens ou serviços).
Do lado oposto situam‑se os
críticos que evocam que as duas medidas em causa somente resolvem parcialmente
os problemas. Argumentam que o grosso destes não se prende tanto com as
vendas não faturadas de bens e serviços mas sim com a subdeclaração de
remunerações do trabalho – visível por exemplo nas áreas da agricultura e da
construção civil, bem como na multiplicidade dos serviços domésticos prestados.
Apesar de verdadeiro, o argumento evocado não se compadece com o que foi
evocado atrás, de que quaisquer vias para mitigar os problemas da economia
paralela e da fraude fiscal são bem‑vindas, até
porque o nível de fiscalidade e a taxa de desemprego nacionais são elevados
e constituem por si só fatores que impulsionam o ímpeto da fuga ao fisco.
Contudo, as medidas não estão incólumes à crítica construtiva.
Concursos distintos por setores
Em último caso os contribuintes particulares poderão
boicotar a estratégia de o fisco fomentar a solicitação de fatura nos setores‑alvo – designadamente por entenderem que o proveito fiscal em sede de
IRS é demasiado diminuto – e, ainda assim, serem premiados nos sorteios da FS,
o que reveste um nítido assunto de risco moral perante quem colabora com
o objetivo específico de alargar a base tributável das empresas. Aliás, do
número de faturas com NIF aceites para os concursos, somente uma fração não
relevante está associada aos mesmos setores.
Por conseguinte, para combater eficazmente a fuga aos
impostos, seria preferível que houvesse sorteios diferenciados. Uns
comportariam em exclusivo as faturas com NIF ligadas aos setores mais
problemáticos em termos de informalidade económica – os setores‑alvo
apresentados na nota (1) e outros que possam vir a ser identificados para o
efeito, nomeadamente as pequenas lojas de retalho e os diversos serviços
especializados prestados às famílias por profissionais liberais (entre os quais
os serviços de reparação de eletrodomésticos, de eletricidade e de canalização,
assim como os serviços de explicações). Separadamente, outros sorteios seriam
orientados apenas para os demais setores onde as transações faturadas são uma
prática vulgar.
Porém, a questão significativa não reside tanto nos
concursos que abarcam os mencionados setores‑alvo mas
sim na necessidade de distinguir o trigo do joio. Relativamente à primeira
estratégia constante do quadro, a medida que porventura importará é o aumento
da dedução à coleta. Face ao exposto seguidamente, as pessoas veriam com
bons olhos se, em relação às faturas referentes aos setores onde a economia
paralela é mais frequente, os sorteios da FS fossem abolidos, preterindo‑os por um claro e material benefício fiscal.
Benefício fiscal insuficiente
De facto, quanto à dedução respeitante ao IVA suportado,
constata‑se que a taxa de 15% é ainda exígua para
enraizar o costume de requerer fatura no ato das transações. Tanto é que,
aquando da decisão governamental de estabelecer um benefício fiscal, não
foi encontrada uma taxa razoável para efeitos de dedução à coleta de IRS, e
numa fase subsequente a repartição de proveitos entre o Estado e os
contribuintes particulares foi mudada em prol dos últimos – passou,
respetivamente, de 95% e 5%, em 2013, para 85% e 15%, em 2014.
Considerando a taxa normal de IVA (de 23%), para usufruir da
coleta máxima de 250€, em 2014 um consumidor terá(ria) de gastar – unicamente
nos restritos setores‑alvo –
7246€ (21.739€ em 2013), i.e., uma despesa total 1,07 (3,2 em 2013)
vezes o montante anual bruto auferido pelos trabalhadores abrangidos pelo
salário mínimo nacional – que tem permanecido em 485€ desde 2011. A despesa
necessária para beneficiar da referida coleta representa mais do que 56% (169%
em 2013) do salário médio português – assumindo que a remuneração‑base média não tem atingido 1,9 vezes o salário mínimo –, portanto
condição não incentivadora para que um caudal maior de indivíduos colabore com
o fisco na diminuição da economia paralela e da fraude fiscal.
Logo, com uma dedução generosa – pelo menos 35% do IVA
suportado –, é bastante provável que haja um resultado global positivo para o
erário público, decorrente da participação ativa da população na campanha
promovida para exigir fatura. É verdade que constitui um egoísmo dos
consumidores a circunstância de estes respeitarem um dever de cidadania graças
às vantagens que diretamente os afetem; mas será uma maneira eficiente para
assegurar a sua consciencialização para as boas práticas.
Aliás, em 2013, de acordo com dados divulgados pelo
Ministério das Finanças no princípio do ano em curso e disponibilizados no
Portal das Finanças até ao começo do presente mês de maio, no universo de
aproximadamente 614,3 milhões de faturas comunicadas à autoridade tributária
válidas para efeitos de IRS – na sequência da finalização do registo do
processamento das faturas de dezembro, o número total de faturas foi de 732,4
milhões – , tão‑só 6,6% continham NIF dos contribuintes,
o que demonstra a manifesta desmotivação dos agentes individuais pela
vantagem fiscal concedida. O correspondente benefício anual conferido aos
consumidores finais com NIF (de 18,95 milhões de euros – 25,41 após aquela
finalização do registo) traduziu‑se em 13,5%
da totalidade do benefício potencial.
Embora a taxa para a dedução à coleta tenha triplicado – de
5% para 15%, como já foi realçado –, e as faturas com NIF (independentemente
dos setores envolvidos) emitidas em 2014 tenham passado, desde o princípio do
ano, a ser elegíveis para o sorteio da FS – o que explicará o incremento
homólogo de cerca de 20% do número de faturas reportadas ao fisco –, as ténues
percentagens supraindicadas de 6,6% e 13,5% subiram pouco, durante os primeiros
meses de 2014, tendo‑se fixado em 8,5% e 19,2% (com base
na informação existente no Portal até ao início de maio). Talvez por tais
percentagens terem gorado as expectativas dos autores das medidas, há alguns
dias operou‑se uma modificação nos elementos
apresentados nesse Portal: agora os dados restringem‑se ao número de «faturas emitidas» – anteriormente «faturas
inseridas» – com benefício em IRS e ao valor do «benefício fiscal conferido»,
tendo desaparecido o número de «faturas com NIF do consumidor» e o valor do
«benefício fiscal potencial».
Natureza dos prémios desadequada
Para além do âmbito dos sorteios e do montante do benefício
fiscal abordados nas duas secções anteriores, coloca‑se o problema da natureza dos prémios. Se, para a prossecução das
estratégias enunciadas no quadro – sobretudo as segunda e terceira –, as
Finanças pretendem discriminar de forma positiva, através de concursos, a
colaboração dos contribuintes particulares, então seria pedagógico para os
consumidores, em geral, e benéfico para os sorteados, em especial, abandonar a
atribuição de prémios em espécie e substituí‑los por
prémios financeiros (por exemplo, dinheiro imediatamente disponível, aplicações
de dívida pública – Certificados de Aforro ou Certificados do Tesouro Poupança
Mais – ou mesmo créditos ou isenções fiscais). Como foi defendido no
último parágrafo da terceira secção, a melhor medida para concretizar a
primeira estratégia expressa no quadro é o alargamento do benefício fiscal.
Ao distribuir veículos de gama alta, o Estado incorre no
erro de transmitir aos bafejados uma insustentável e prejudicial opulência,
incompatível com o frágil arcabouço económico da maioria dos contribuintes e
contraditória com as contínuas mensagens que a classe política dominante e as
instituições internacionais preponderantes têm anunciado e preconizado para
Portugal. As Finanças deveriam ter refletido convenientemente sobre a utilidade
dos automóveis e o custo de manutenção destes, sob pena de se transformar um
prémio oloroso e libertador num fardo amargo e castigador.
A erosão do valor dos automóveis – quaisquer que sejam – não
se compadece com a generalidade das pessoas. Aplicar o dinheiro nesse tipo de
bens constitui uma opção marcadamente individual. É sabido que uma grande
porção da população tem um elevado encanto pelo gasto perdulário e pela vaidade
supérflua, mas daí a ser o próprio fisco a promover o engodo do consumismo vai
uma distância abismal.
Ademais, parece que não foram acautelados os interesses dos
contribuintes que não poderão usufruir da benesse dos concursos, seja por falta
de aptidão física ou legal, seja por evidente incapacidade económica. O rol
abrange desde logo os cidadãos invisuais, os incapacitados, os juridicamente
incapazes e os não detentores de licença ou experiência de condução, bem como
os pobres, os desempregados e os que têm escasso rendimento disponível.
Em suma: os sorteios da FS são uma medida salutar em
estratégia e duvidosa (senão mesmo perniciosa) em natureza. Seria ótimo que as
duas facetas da realidade – estratégia e natureza – estivessem em sintonia e suscitassem
a coerência entre as medidas e os seus fins. Não estando, o resultado das
medidas será fugaz, ficando aquém dos salutares fins pretendidos. É mais um
caso de intenções meritórias com ações inferiores. Eis porque os sorteios em
apreço são o conteúdo menor dum objetivo maior.