PARTE III: A ESQUERDA E A DIREITA NO SÉCULO XXI
O que se pode entender por Esquerda e Direita nos nossos
dias? A resposta é importante para se justificar ou refutar mais concretamente
a persistência dessa polarização.
É, pois, necessária uma redefinição atualizada de esquerda e
de direita, como tendências de pensamento, posturas face à realidade. Parece-me
que um elemento básico reside – ainda e sempre – na aceitação, justificação e
defesa (pela direita) dos privilégios associados a estatutos sociais e económicos,
assim como na relevância dos respetivos símbolos;
ou não (pela esquerda).
A chamada “direita liberal” recupera o princípio máximo da
liberdade individual como motor criativo da sociedade, com particular
incidência na área dos negócios. É uma evolução intelectual do conceito de self made man, de contornos eminentemente monetários e económicos – estimulando a
ascensão social pelo empreendedorismo e pelo retorno financeiro que este traz,
quando (supostamente) bem conduzido. Mas a realidade e a literatura estão
cheias de “desvios” que tal perspetiva da vida pode trazer: “Chegarei lá, no matter what!”, assegura-se o self made man. Ora... “no matter what” traz frequentemente,
como outro lado da moeda liberal, grandes problemas, para o próprio e, às
vezes, para a família e para outros, “esmagados” pelos passos de gigante do
empreendedor.
Nesta perspetiva, o Estado
é quase sempre visto como um empecilho, algo que deve ter uma dimensão e uma
capacidade de intervenção diminutas, que não atrapalhem, que não criem
obstáculos à dinâmica empreendedora dos que “querem fazer”. Acontece que, hoje,
os que “querem fazer” são também os inventores e usuários das farsas produtivas
denominadas “produtos financeiros”. Ora, não terá sido a especulação nestas abstrações
aberrantes que, de braço dado com a corrupção, levou à ruina, ou quase, boa
parte da população mundial? Deverão os reais e falsos “empreendedores” ter
rédea solta? Deverá o Estado dar-lhes a bênção, “no matter what”, porque lhes atribui a criação de riqueza? Será natural e, portanto, aceitável a
progressiva concentração de riqueza no Mundo? Deverá ficar impune a exploração
infame dos “outros”, sem sequer uma restrição de idade?
Falei atrás em evolução
intelectual porque, muitas e muitas vezes, o self made man era homem de baixa formação cultural e intelectual,
que tendia a desprezar o que não fosse o “negócio”. Não deve ser à toa que no
Brasil, em tempos terra de eleição para estas pessoas, o significado de
“negócio” aí se tenha generalizado com o significado de “coisa”.
Claro que a liberdade criativa, vital agente de
transformação, a sua potencialidade e força geradora de novas realidades, são
fundamentais para os indivíduos e as sociedades humanas. Não podem, de modo
algum, ser subestimadas. Esse foi, creio, um dos grandes problemas da doutrina
comunista, em que até a liberdade criativa dos artistas acabou por ser
submetida ao pseudosserviço da revolução e do proletariado, culminando no
denominado “realismo socialista” – termos que, se bem observados, resumem o
espartilho a que os artistas se deveriam submeter – e nos atraentes grafismos
dos cartazes de propaganda representando um sorridente Líder e um radioso Mundo
Melhor. Que ilusão e manipulação!
A liberdade criativa é fundamental em todos os aspetos da
ação humana e, só por isso, faz explodir as amarras do materialismo. A
“liberdade” necessita de condições materiais, naturalmente, mas não se
restringe a elas. A liberdade artística, por exemplo, extravasa largamente o realismo, só pode subsistir e criar
asas através do chamado (e tantas vezes desprezado) idealismo. O valor – se tal existe – de um obra artística não se
pode medir realisticamente, materialmente. Não se trata, pois, de um bem
estritamente material, nem na sua criação nem na sua “apropriação” pela
comunidade. O mesmo pode ser dito das obras científicas.
Ou seja: a esquerda, no século XXI, precisa de ser menos
“materialista” e mais “idealista”. O idealismo foi lançado às urtigas do
descrédito pelo materialismo dominante, à esquerda, desde Marx ou mesmo antes. A
grande preocupação, o grande objetivo revolucionário da filosofia de então era
contribuir para mudar o Mundo e não apenas para o interpretar; preocupação
bastante compreensível e louvável, face às condições miseráveis, muitas vezes
sub-humanas, em que vivia e trabalhava a maioria da população, particularmente
o proletariado.
Contudo, século e meio passado sobre essa época, que gerou
ideologias comunistas e anarquistas, tal império filosófico de feição
positivista – fundamentado quase estritamente nas “condições materiais” da existência
e na rejeição do “idealismo alienante” propalado pelos exploradores – deve
perder autoridade. Deve fazê-lo, como linha inspiradora da esquerda, porque foi
a semente do autoritarismo que impôs “cientificamente” a direção a seguir. Não
tenho grande dúvida de que foi aquela imposta linha restritiva – e repressora –
que levou à proclamada “degenerescência” do comunismo (inevitavelmente, diria
Bakunine!) e finalmente ao seu colapso; isto aplica-se também à linha “mista”
que hoje se encontra na China, forçada a admitir uma “abertura espiritual” e a
usar palácios imperiais e mosteiros budistas como riqueza turística, já que,
neste aspeto, nada criou e muito destruiu. Entretanto, na Coreia do Norte, pseudo-república socialista sob o signo
da ideologia juche, o poder
autocrático usa e deturpa o “idealismo” na manipulação dos factos e na
construção de uma nova forma de culto da personalidade: uma mitologia destinada
a perpetuar o regime criado por Kim Il-Sung!
Quanto aos Sindicatos e Partidos do mundo capitalista, a orientação
de esquerda sempre se centrou nas “lutas dos trabalhadores” por melhores
condições de vida, níveis salariais, horários de trabalho, etc. Ora, por
importante que isso tenha sido – e continue a ser – o pensamento e a ação da
esquerda não deve restringir-se a tais limites.
É que o capitalismo, em certa época aparentemente condenado
à decadência e morte, está, pelo contrário, mais vivo e imperante do que nunca (sobretudo,
ao que parece, de um ponto de vista financeiro). E isso não se deve apenas à
“queda do comunismo” na URSS e países satélites. Este, aliás, caiu de podre (e,
afinal, não o capitalismo!); e ainda bem, porque se tornou rapidamente um tipo
de sistema iníquo e hipócrita, em que novas classes dominantes se geraram e
passaram a defender os seus interesses e privilégios (na prática, a esquerda
volveu-se em direita reacionária). O capitalismo, por outro lado, tem tido
tanto êxito, transformando-se, ajustando-se e reafirmando-se, porque
corresponde à natureza humana, a um certo poder de sedução aliado à evolução
técnico-científica, talvez melhor do que os sistemas anteriores,
estratificados, e do que os sistemas comunistas, artificiais e impostos.
Desde sempre, a direita de modo algum se deixou acantonar em
qualquer tipo de materialismo. Este encontra-se certamente, no pensamento
pragmático de direita, tantas vezes egoísta, na mentalidade restrita de um mau gestor, na voragem do lucro e do cash-flow, na justificação de que “as
coisas são como são” ou de que “o mundo é assim”. Mas a direita e o chamado
centro-direita abarcam também uma ampla espiritualidade, que não se reduz,
longe disso, a verniz e falsas devoções; incluem uma boa parte do “mundo
cristão”; acolhem, porque sim ou porque aprenderam a fazê-lo, diversas crenças
religiosas e filosofias, como a budista (outrora sujeita a feroz repressão
pelas autoridades comunistas, sobretudo na China).
No século XX, infelizmente, a esquerda tornou-se refém de
conceções autoritariamente materialistas que, na sua vertente comunista, levaram
invariavelmente a ditaduras. Por essa razão, os ideais libertários do
pós-guerra desenvolveram-se a Ocidente e, sobretudo a partir dos anos 50, nos
EUA, a par de relevantes criações/tendências artísticas, incluindo novos
géneros musicais, transmutados de raízes populares. Foi aí que, contra todas as
resistências conservadoras, surgiram importantes lutas pela igualdade racial ou
de género (com Martin Luther King, por exemplo), pela emancipação feminina e
não só. Pelo mundo fora, apesar de tais lutas e movimentos terem claras
conotações de esquerda e a ela se deverem, não à direita, foi em sistemas
capitalistas – e não comunistas – que se despoletaram e, de algum modo,
venceram.
São semelhantes ideais libertários que devem ser, cada vez
mais, assumidos pela esquerda – mas não como algo “lateral”. É verdade que a
atuação do BE ou do Livre já passam por aí; o que incomoda
a direita, que os apelida de partidos de extrema-esquerda. A esquerda, como
pensamento organizado, deve deixar de “temer” o genuíno idealismo porque este é
fundamental para o ser humano; deve valorizá-lo – não vê-lo invariavelmente como
muleta ou placebo – e colocar o materialismo no seu devido lugar: como uma das
componentes da vida e da História, nada mais.
O século XX mostrou, a começar pela Física Atómica, que a
“certeza científica” (base do pensamento marxista e, por conseguinte, da
esquerda mais autossuficiente) é muito mais ilusória do que se pensava à época
de Marx. Não é à toa que o budismo, com a sua insistência no aspeto ilusório do
nosso conhecimento, se tem disseminado pelo Ocidente. A teoria do Caos veio
também demonstrar que a previsibilidade dos eventos é tanto mais falível quanto
maior a complexidade destes e o prazo a que se aplica. Isto significa que o
determinismo marxista é, hoje, totalmente inadmissível.
Respeito enormemente a Ciência, mas não convém espartilhá-la
às nossas limitações. Na minha compreensão do mundo intuo uma realidade
múltipla, vejo-o composto de diversos “planos”, interdependentes de modo mais
ou menos subtil, mais ou menos evidente. A Matemática, que me maravilha, é uma
dessas realidades, com manifestas correlações com o mundo material; não é uma
invenção humana (exceto no que toca à sua codificação) porque é demasiado perfeita
para isso, jamais nela se encontrou uma contradição, e não há, a meu ver, outro
modo de compreender a famosa constatação pitagórica de Galileu: “A Natureza
está escrita em caracteres matemáticos”. Que cálculos matemáticos, baseados nas abstratas leis de Newton, levem
a colocar satélites em órbita, homens na lua e sondas a circular
controladamente pelo espaço – realizações bastante físicas, como também, infelizmente, o é a trajetória de um míssil –
constituem exemplos da misteriosa ligação entre “ideal” e “real”. E quanto à
famosa relação causa-efeito? “É indiscutível!” – apregoa-se, com a autoridade
do bom senso. Porém, segundo determinadas equações relativistas, há dois fluxos temporais no universo, as interações
de causa e efeito formam uma teia muito mais vasta e complexa do que poderíamos
imaginar (o que, a propósito, pode ajudar a compreender estranhos fenómenos
psíquicos, como as premonições ou, ao invés, aquela sensação conhecida como “déjà vu”, que tantos de nós já
experimentámos inequivocamente).
Resumindo: de um ponto de vista teórico, torna-se
fundamental um ou mais pensadores de esquerda, da envergadura de Marx e Engels,
que consigam formular novas bases para a “ação da esquerda” e os ideais que a
inspiram. A esquerda precisa, urgentemente, de novos ideais, menos restritivos e mais humanos, que lhe permitam
enfrentar a direita com propostas consequentes.
Na verdade, esta nova definição de “esquerda”, a sua procura,
já está em curso (por exemplo com o Syriza
na Grécia). Mas faz falta, parece-me, uma base teórica englobante, que renove a
esquerda e dê maior coerência à sua prática, sendo muito mais do que,
simplesmente, “do contra”. Em Portugal, mesmo o PCP, com o BE, tem dado
alguns passos no sentido de uma pequena modificação na sua “praxis”, ao aceitar
participar – com sucesso – numa ação governativa conduzida pelo PS, na implementação de uma alternativa
ao que a direita coligada do PSD/CDS garantia não ter alternativa: o fraturante
e depauperante programa levado a cabo por esses diletos “bons alunos” da escola
de mestre Schäuble, temperado de “tua
culpa” e de “janelas de oportunidade”.
Por fim, o papel do Estado
é (sempre foi) da maior importância em qualquer visão de esquerda do mundo,
exceto na dos anarquistas; o problema da esquerda é que, na sua concretização
em regimes comunistas, sempre redundou numa híper-estrutura fortemente
repressiva dos cidadãos que deveria representar e defender. Esse papel tem que
ser repensado. De um ponto de vista, dito mais “moderado” – o da doutrina
socialista (PS) –, um dos papéis
centrais do Estado é o controlo dos excessos a que o “liberalismo” pode levar;
a garantia dos direitos fundamentais do cidadão, independentemente da sua
condição social, raça, sexo ou religião; a gestão e o governo do “bem comum”. É
um ponto de partida.
A Polícia e o Exército são instrumentos de soberania
essenciais em qualquer Estado. Mas, à direita ou à esquerda, quando os governos
se tornam corruptos ou incompetentes, que direito têm de usar a polícia ou o exército
contra a população que se revolta, a favor da manutenção de um espúrio status quo? Já para não falar da
“polícia política”, uma aberração própria das ditaduras!... O Estado deve ser forte, na defesa das condições de vida,
da educação, da saúde, segurança social, etc. Mas não deve ser uma fortaleza; porque esta abriga e defende
sempre os que se apropriaram do Estado para o exercício da sua vontade:
oligarquias, governantes e “satélites” que em torno deles orbitam.
A “filosofia política” não se pode isolar da Filosofia em
geral, no que concerne à busca do sentido da vida. Não se trata de encontrar e
fornecer uma resposta para todos os seres humanos porquanto, além do que a
todos se aplica, o sentido tem de ser procurado por cada um em particular, para
a sua própria vida. Trata-se de compreender, antes de mais, que regimes
autoritários não se preocupam minimamente com o sentido da vida, a não ser o da
sua própria existência e preservação. O êxito do capitalismo deve-se, em boa
medida, a propiciar certos sentidos
para a vida.
Nenhum sistema socioeconómico alguma vez trará a
possibilidade de respostas totais, evidentemente; isso corresponderia a uma
situação perfeita, coisa que não existe. Não existirá nunca um sistema perfeito
(até porque, nesse caso, seria imutável); mas qualquer sistema pode ser
aperfeiçoado, melhorado; e é aqui que uma “filosofia de esquerda”, globalmente
falando, se torna importante – ou melhor, imprescindível. Porque a diferença de
pontos de vista em relação ao que significa “melhorar” é precisamente o que
marca a distinção entre esquerda e direita.
Luís Dias Ferreira