Portugal e os outros Estados‑membros da União Europeia
Segundo informação do relatório de 17 de março de 2014, produzido
pela Comissão Europeia, referente ao painel de avaliação dos sistemas jurídicos
– avaliação efetuada pela Comissão para a Eficácia da Justiça na Europa (CEPEJ)
do Conselho da Europa, do qual fazem parte 47 países (europeus, asiáticos e
transcontinentais), incluindo os 28 estados‑membros da
União Europeia (UE) –, entre os 20 estados da UE que disponibilizaram dados à
CEPEJ reportados a 2012, Portugal foi o que registou maior tempo médio
necessário para resolver, em tribunais de primeira instância, processos de
natureza não penal (nomeadamente processos civis, comerciais, administrativos e
executivos, fossem ou não litigiosos). Não obstante, de acordo com a mesma
fonte, de 2010 a 2012 observou‑se que em
Portugal o tempo médio desceu sobremaneira, de aproximadamente 1100 para pouco
mais de 850 dias.
O nosso País estava colocado igualmente no fundo da tabela
quanto ao número de processos pendentes em tribunais de primeira instância. Em
2012, entre 22 estados da UE que forneceram dados à CEPEJ, Portugal tinha, em
média, quase 16 processos por cada centena de habitantes. Do total de processos
pendentes, pouco mais de 1/5 relacionava‑se com
conflitos judiciais em matéria civil e comercial, portanto quase 4/5
respeitavam a processos civis e comerciais não litigiosos e a outros processos
não penais, litigiosos ou não. Esta última fração ilustra o quanto há por
empreender para reduzir a burocracia e otimizar os recursos.
As conclusões não foram muito diferentes quando as
fotografias tiradas aos países se restringiram ao tempo necessário para a
resolução de conflitos civis e comerciais de primeira instância, bem como –
fração de 1/5 identificada no parágrafo antecedente – ao número dos respetivos
processos que estavam pendentes. Um regime que assente em justiça lenta – e com
a agravante de ser cara – é quase tão injusto como outro que condescenda com a
absolvição dos culpados. Os dados do relatório supramencionado puseram a nu a
magnitude da desvantagem competitiva de Portugal na área da justiça – alinhada,
aliás, com a desvantagem existente noutras áreas –, para além de revelarem o
estado incipiente e ténue da nossa soturna democracia.
Contudo é forçoso complementar, em abono da verdade, as
conclusões referentes a Portugal destacadas nos parágrafos anteriores. A CEPEJ
avançou dois elementos que explicaram parcialmente a desprestigiante posição do
País – o número de juízes e o número de advogados. Por um lado, o facto de
termos o pior registo quanto à duração de resolução dos processos e ao número
de processos pendentes não significava que a produtividade dos juízes nacionais
fosse a pior, dado que Portugal encontrava‑se na média
europeia no que imputava ao número de juízes profissionais (i.e., a
tempo inteiro) por cada 100 mil habitantes. Entre os 27 estados‑membros da UE para os quais existia informação, estávamos na 14.ª
posição, ou seja, precisamente no meio da tabela. Em 2012 tínhamos menos de 200
juízes por milhão de habitantes. Em 20 desses 27 países o correspondente
número de juízes situava‑se no
intervalo de 100 a 300.
Por outro lado, verificou‑se que,
para os mesmos 27 estados, Portugal ocupava a sétima posição no tocante ao
número de advogados por cada por cada 100 mil habitantes – em 2012 havia
à volta de 2700 advogados por milhão de habitantes. Para efeitos de comparação
com a nossa posição respeitante ao número de juízes indicada no parágrafo de
cima, informe‑se que o país que ocupava a 14.ª posição
em termos do número de advogados tinha pouco mais de mil advogados por
milhão de habitantes.
A proporção entre o número de juízes e o de advogados em
Portugal é sintomática da burocracia retrógrada do nosso regime e dos
procedimentos jurídicos intrincados, enfim, algumas das causas justificativas
da ineficácia e da ineficiência da justiça. Com base em dados de 2010, havia
9,7 advogados por juiz no espaço da UE (excetuando Chipre, Malta e Reino Unido,
por ausência de informação comparável à dos restantes países) – a mediana era
5,1. Nesse ano Portugal registou a quarta proporção mais elevada, com 14,1
advogados por juiz – em 2012 o rácio foi semelhante ao de 2010.
Aliás, o gráfico seguinte evidencia a existência duma
ligação forte entre o tempo necessário para a resolução de processos judiciais
e o universo de advogados – apesar de nem sempre a realidade dos regimes dos
vários países ser totalmente comparável. Essa ligação traduz‑se num coeficiente de correlação de 0,72. Por falta de informação, a
Bélgica, a Irlanda e o Reino Unido não foram incluídos no gráfico. Visto
que, para 2012, em apenas 20 países havia dados para o tempo de resolução dos
processos – vide primeiro parágrafo desta secção –, para calcular tal
coeficiente aproveitou‑se a
correspondente informação relativa a 2010, no pressuposto razoável que a
realidade em 2012 não diferia muito da de 2010. De qualquer modo, considerando
exclusivamente os 20 países atrás enunciados, a correlação acentuava‑se, passando para 0,83.
O coeficiente obtido aumentava de 0,72 para 0,82 se fosse excluído da análise o Luxemburgo – um dos cinco países cujos dados sobre o número de advogados e sobre a duração dos processos em primeira instância reportam, respetivamente, a 2012 e a 2010. Trata‑se dum território com características peculiares que distorcem a comparação com os outros estados no que se refere ao número de advogados. A peculiaridade prende-se com dois factos, a saber: o peso da atividade financeira luxemburguesa exige um denso contingente de staff jurídico, e o Tribunal de Justiça da UE está sedeado no Grão‑Ducado. O gráfico poderá ilustrar ainda que a maior propensão cultural dos países do sul da Europa para a litigância (face aos seus parceiros da UE) traduz‑se na solicitação acrescida do serviço de advocacia, o que conduz ao congestionamento dos tribunais e à necessidade de mais tempo para encerrar os processos judiciais.
Exemplos de boas práticas internacionais
Embora não haja modelos jurídicos perfeitos, uns são deveras
mais imperfeitos do que outros. É duvidoso – senão sofismável – evocar formas
específicas de organização judicial unicamente porque surtem efeito num país.
Como foi realçado anteriormente, o que releva é a importância que os cidadãos
depositam na justiça. Na secção em apreço apresentam‑se dois exemplos comprovativos de como esterilizar com êxito a cloaca
da corrupção e da burla, tipos de crimes bem conhecidos em Portugal, república
onde os prevaricadores conseguem esquivar‑se às malhas da lei e da justiça.
Seria bom que os juízes portugueses fizessem um curso
intensivo de justiça efetivamente independente, em especial para não se
deixarem instrumentalizar pelo poder político e para aprenderem como se tem mão
pesada com os barões corruptos e os restantes traidores da democracia, mesmo
que sejam proeminentes empresários, autarcas, deputados ou ministros (incluindo
os chefes da ordem ministerial). Tenha‑se presente
– como acontece no nosso País – que é redutor cingir a independência dos
juízes ao facto de estes serem recrutados (excluindo os juízes com os cargos
mais elevados), não por nomeações, mas sim por concursos públicos, através dos
quais são selecionados os candidatos que demonstrem maior mérito para o
exercício da função. Conviria que aquele curso fosse ministrado pelos
intrépidos e impolutos juízes italianos que desmembraram o polvo mafioso da
corrupção e transformaram em cinzas os tradicionais partidos do poder –
operação Mãos Limpas, iniciada no início dos anos 90.
É certo que a hercúlea luta só foi possível porque em Itália
existe, na verdadeira aceção da expressão, independência do poder judicial face
ao poder político, condição fundamental para garantir permanentemente que os
juízes tomem, em pura consistência – sublinhe‑se –,
decisões justas (mesmo que depois se revelem erradas, pois o erro é inerente ao
processo de tomada de decisões). Para tanto será necessário que a classe
política abdique do domínio que tem sobre o poder judicial e o ceda a este
último, o que se antevê ser alcançável somente quando o povo português,
exaurido pelo chicote e jugo da corrupção, dos favorecimentos e das demais
golpadas, assim reclame viver num genuíno Estado de direito. Importa estar
ciente que a cruzada italiana contra a corrupção não teria surgido se não fosse
o gentio exasperado, na rua, a disparar firmemente o gatilho da revolta, ante a
saturação que o assolou decorrente dos custos crescentes da maleita dos
subornos e da submissão da administração pública às jogadas imundas da
generalidade da horda política.
Por outro lado – segundo exemplo –, não se podem abstrair as
virtudes invulgares intrínsecas ao sistema jurídico norte‑americano, apesar de ele por vezes confrontar‑se com erros gravíssimos (designadamente quando inocentes são
condenados à morte). O sentido pragmático de justiça e a obsessão pela igualdade
dos cidadãos perante a lei, consubstanciados no desejo de reparar rapidamente
os danos causados pela violação dos direitos individuais, fazem dos Estados
Unidos da América uma referência em matéria de eficiência.
É paradigmático o caso Madoff – esquema financeiro em
pirâmide do tipo Ponzi que envolveu cerca de 65 mil milhões de dólares
(montante correspondente a quase 0,5% do Produto Interno Bruto norte‑americano de 2009, não obstante parte do valor ter sido
posteriormente recuperado). Em menos dum mês Bernard Madoff foi detido e
acusado, e impôs‑se‑lhe provisoriamente uma pena de prisão de 30 anos. Na altura comentou‑se ironicamente que, se fosse em Portugal, não chegavam 30 anos
para deter e acusar o indivíduo, sendo‑lhe
aplicada no fim uma pena de prisão máxima dum mês.
Como é sabido, Madoff cumpre uma pena de 150 anos de prisão,
não tendo o processo excedido sete meses – desde que o escândalo rebentou até à
sentença final, em junho de 2009. Ao invés, aqui as megaburlas e os escândalos
financeiros que se presem – que chegam a avultar milhares de milhões de euros,
como foi o caso BPN, cujas perdas acumuladas em 2012 suportadas pelo erário
publico já ascendiam a aproximadamente 4,5% do Produto Interno Bruto português
desse ano – arrastam‑se ad æternum nos tribunais, sendo
punidos, numa primeira fase, apenas pela precipitada avaliação da comunicação
social e pela pachorrenta e amnésica opinião pública, e depois, no máximo,
com cócegas de poucos meses de prisão efetiva.
À guisa de desafio
A burocracia, a par das permanentes diligências pré‑judiciais e dos sistemáticos requerimentos e recursos unicamente
dilatórios, vem beneficiando as partes financeira e politicamente mais
apetrechadas, e portanto tem uma significativa quota‑parte de responsabilidade pelo descrédito da justiça nacional.
Conforme salientado, o atual mau funcionamento pode ser debelado se nascer
vontade política para o efeito, especialmente se se secar a fonte das inúteis
manobras processuais. Para além disso, caberá ainda aos políticos o papel de
moralizarem a justiça, seja enterrando a sua capacidade ardilosa de alterar as
leis para delas poderem usufruir – até que em legislaturas subsequentes outros
políticos corrijam os erros cometidos, repondo as leis antecedentes –, seja
instituindo um sistema jurídico verdadeiramente independente, que jamais possa
ficar subjugado aos caprichos dos interesses partidários – retome‑se a referência constante do segundo parágrafo da secção anterior, de
que o acesso aos cargos jurídicos superiores continua submetido às
escolhas dos políticos.
Mas a culpa não morre solteira. Acima de tudo, e reafirmando
o que já foi expresso neste texto, será indispensável que o eleitorado abandone
a apatia relativamente ao destino da democracia e reivindique um intenso e
contínuo nível de justiça. Ademais, o nosso sistema não passará da cepa torta
enquanto permitir que uma boa porção dos advogados – por inerência da natureza
dos seus clientes, é certo – continue a abraçar e a louvar uma justiça serôdia
ou travestida, cujo fito principal é atrasar ou impedir os processos judiciais.
Por outras palavras: o caminho da luz ocorrerá quando os advogados (forçados ou
não pela lei) tiverem a mente flexível para, nas ocasiões em que as palavras
“justo” e “legal” não rimarem totalmente, derem primazia à primeira. Será um
trabalho bastante árduo tentar inverter o statu quo, o qual só será efetuado
quando a comunicação social e a opinião pública atingirem a maturidade cívica e
concertarem esforços para a mudança de rumo.
Continuando na identificação da origem da culpa, há que
incluir os juízes. Eles devem ser chamados à colação, tanto por desautorizarem
(e por vezes, na prática, humilharem) colegas dos tribunais de instância
inferior – e, assim, deixarem‑se cair na
teia dos vícios –, como por não terem o distanciamento necessário e
entrarem na defesa dos interesses corporativos – ao não punirem adequadamente
os colegas que mancham a justiça. No que respeita a este último aspeto, convém
frisar que a aferição da qualidade das decisões dos juízes – que
impreterivelmente tem de ser feita por pares imparciais – não melindra a sua
independência; apenas assegura a credibilidade do aparelho judiciário.
Em regimes eficazes, a independência é incompatível com a
impunidade. A ausência da aferição atrás identificada lembra as situações de
juiz em causa própria, que comprovadamente provocam mau resultado. A
inamovibilidade dos juízes é uma condição que deve estar relacionada com a
competência, ou antes, deve ser excecionada em casos de comprovada
incompetência; caso contrário, permitir‑se‑á que, no limite, a desresponsabilização seja vitalícia, o que é a
antítese da própria justiça. Para tanto, os agentes envolvidos têm de estar
preparados para fomentar a competência e eliminar de facto a impunidade
– não através do levantamento de processos disciplinares que pouco ou nada
produzem de material. Haja povo criador e ousado que assim pense e que queira
atacar sem rodeios os corporativismos.
Repetindo a pergunta que intitula a primeira secção da parte
I deste texto: aplica‑se‑nos o círculo virtuoso «sic lex, sic judex» ou o círculo vicioso «sic
intentio, sic judex»? Nem sempre é a força da lei que norteia os vereditos;
nalgumas ocasiões o norte é dado pela má intenção, seja de quem faz as leis, seja
de quem as aplica. Com efeito, não é invulgar que duas ações de equivalente
matéria jurídica assistam a desfechos divergentes ou antagónicos, consoante a
capacidade financeira das partes, o peso político dos arguidos e o entendimento
dos juízes. Para que não houvesse dúvida quanto ao grau de liberdade que vigora
num Estado de direito, nunca se deveria colocar aquela pergunta, pois ela
indicia uma violação mordaz da república, e ainda mais da verdade que brotou –
mas não vingou como se ansiava – do arroubo do povo e dos militares em 1974.
A descriminalização dos pecadores representa a condenação
ignóbil da Justiça. Réquiem por Ela, Senhora da fulgurante liverdade. Uma vez
elevada ao lugar que tarda, celebre‑se a sua
descida ao mundo dos homens, somente sonhada ou com genuínos e duradouros
pactos de regime, ou com a renovação da magistratura e a insurreição da
população. No fundo – ou o sistema jurídico não fosse o esteio máximo da
democracia –, será a aurora doutra cruzada que ficará na História de Portugal:
a operação Mãos Dadas com Abril.
2 comentários:
Na Justiça fica bem evidente o atraso que nos separa de todos os outros Países analisados. Duvido até que num País onde o tempo médio para resolver um processo demora 3 anos se possa afirmar que existe justiça! Sabendo que a responsabilidade desse atraso se divide por várias entidades, lideradas pela assembleia da republica e os profissionais do sector da advogacia fico sempre na dúvida sobre os interesses de ambos!
Aparentemente a justiça já está a dar sinais de vida. Falta muito para sobrevier. Mas não falta tudo. Virá o dia em que uma parte dos ministros e demais políticos, superiores e inferiores, estarão na barra dos tribunais. Haja povo e juíxes para isso.
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